FRAUDE CONTRA CREDORES NA ALIENAÇÃO IMOBILIÁRIA
Iuli Ratzka Formiga (*) I A transmissão imobiliária como ato jurídico válido O ser humano ao viver em sociedade constitui relacionamentos que refletem na esfera do direito, apresentando resultados positivos ou negativos frente ao ordenamento jurídico e frente ao conceito de moral da sociedade. Os acontecimentos que produzem efeitos jurídicos são os fatos jurídicos (lato sensu). Deles decorrem o surgimento, a continuidade e a extinção dos direitos. Tais acontecimentos podem ser decorrentes de ordem natural, sem a interferência da vontade humana, como por exemplo, o decurso do tempo; ou podem ser decorrentes de acontecimentos para o qual a vontade humana interferiu de modo indireto, como por exemplo, o nascimento; ou ainda podem ser decorrentes exclusivamente da vontade humana, como por exemplo, a elaboração de um contrato de venda e compra. As ações humanas podem ser lícitas ou ilícitas, se lícitas são denominadas atos jurídicos (Código Civil, art. 81), se ilícitas são denominadas atos ilícitos (Código Civil, art. 159). As primeiras produzem o efeito jurídico desejado pelo agente, as segundas acarretam um efeito jurídico involuntário, como a sanção decorrente de violação de preceito normativo. “Do exposto se dá conta da diferenciação conceitual entre fato jurídico e ato jurídico. Em sentido amplo, o primeiro compreende o segundo, aquele é o gênero, de que este é a espécie. Em sentido restrito, porém, fato jurídico é acontecimento natural, independente da vontade interna, enquanto ato jurídico é acontecimento voluntário, fruto da inteligência e da vontade, querido e desejado pelo interessado” (Washington de Barros Monteiro, Curso de Direito Civil. 1. Vol. , 28 ed. , São Paulo: Saraiva, 1989. p.164 et seq.) De acordo com o art. 81 do Código Civil , “todo o ato lícito, que tenha por fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar ou extinguir direitos, se denomina ato jurídico”. Ressalta-se aqui que a validade do ato jurídico requer agente capaz, objeto lícito e forma prescrita ou não defesa em lei (Código Civil, art. 82). Esses são os requisitos gerais, ou seja, comuns a todos os atos jurídicos. Deste modo, em princípio, toda transmissão imobiliária que atenda aos requisitos legais é um ato jurídico válido. Ocorre que, apesar de atendidos os requisitos legais, a transmissão imobiliária pode conter vícios que a torne passível de anulação. Um desses vícios é a fraude contra credores. II Fraude contra credores. Conceituação Fraude contra credores é o artifício empregado pelo devedor que desfalca o seu patrimônio de modo a tornar-se insolvente, com o intuito de preservar esse patrimônio em detrimento das obrigações assumidas e dos interesses dos credores. A insolvência pode ser definida como o “estado daquele que não possui bens livres e desembaraçados para pagar suas dívidas”. (Deoclesiano Torrieri Guimarães, Dicionário Jurídico. 2 ed. , Rideel: 1998. p. 101). Assim, as dívidas superam o valor dos bens. Dois são os elementos da fraude: 1) objetivo (eventus damni), “que é todo ato prejudicial ao credor, por tornar o devedor insolvente ou por ter sido realizado em estado de insolvência, devendo haver nexo causal entre o ato do devedor e a sua insolvência” . (Maria Helena Diniz, Tratado Teórico e Prático dos Contratos.- 1 vol., 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1996. p.30). 2) subjetivo (consilium fraudis), que é a má-fé, o intuito malicioso de prejudicar o credor, afastando os efeitos da cobrança. Nem sempre é necessário o intuito exclusivo de prejudicar o credor, o simples conhecimento de que poderá vir a prejudicá-lo com a realização do negócio jurídico, pode caracterizar a fraude. “Pode advir do devedor isoladamente, como na renúncia de herança, ou do devedor aliado a terceiro, como na venda fraudulenta”. (Washington de Barros Monteiro, op. cit., p.216). Nas transmissões gratuitas , presume-se a fraude independente da má-fé. Ilustrando o exposto, o julgado abaixo proferido pela Quarta Turma do Tribunal Regional Federal 1. Região: Fraude Contratos Onerosos Requisitos São requisitos da fraude contra credores nos contratos onerosos: “eventus damni”, que se define pela lesão causada aos credores; “consilium fraudis”, que consiste na intenção comum do devedor e de terceiro de ilidir os efeitos da cobrança; insolvência notória ou conhecida pelo outro contraente e contemporaneidade da condição de credor quirografário à prática da fraude (TRF 1. R. Ac. Unân. da 4. T. publ. no DJ de 5-10-99 Ap. Cív 93.01.33796-7-MG Rel. Juíza Vera Clara Cruz) (ADCOAS - BJA n. 10, 2000, p.196) De acordo com o Código Civil, art. 106, art. 107 e art. 111, ocorre a fraude contra credores nas seguintes hipóteses: 1) transmissão gratuita de bens ou perdão de dívida, praticado por devedor insolvente, ou por tais atos reduzido à insolvência; Fraude contra credores Negócio jurídico gratuito Doação de bem a filha Existência hipotética de outros bens à época do ato Irrelevância Insolvência ulterior caracterizada Ação pauliana julgada procedente. Improvimento ao recurso. Aplicação do art. 106 “caput”, do CC. Para caracterização de fraude contra credores em caso de doação a filho, basta que, com a alienação, o pai se reduza ou fique na iminência de se reduzir à insolvência, a qual resulta do simples fato de não provar a existência de outros bens, capazes de responder pela dívida. (Ap. Cív. 076.636-4/8-00 - 2. Câm. Direito Privado TJSP j. 19.10.1999 rel. Des. Cezar Peluso) (Boletim de Direito Imobiliário n. 06, fevereiro/2000, p.19) Nesse acórdão, o desembargador Cezar Peluso menciona a presunção de fraude nas transmissões gratuitas, independente de má-fé: A gratuidade do ato é, por outro lado, nos termos do art. 106, “caput”, do Código Civil, suficiente para a caracterização da “fraus”, cujo significado é só o de frustação objetiva da garantia dos credores, de modo que se abstrai a existência, ou não, de propósito lesivo do doador e de boa ou má-fé da donatária: é “despiciendo que o devedor tivesse tido a intenção de lesar os seus credores, ou que os beneficiários do ato estivessem inteirados da insolvência atual ou iminente do doador”(Yussef Said Cahali, “Fraude contra Credores”, SP, Ed. RT, 1989, p.224) 2) contratos onerosos firmados por devedor insolvente, quando a insolvência for notória, ou houver motivo para ser conhecida do outro contratante, como por exemplo, a existência de títulos protestados ou relações de amizade. Assim, a insolvência pode ser notória ou presumida. Será notória quando for do conhecimento geral, como no primeiro exemplo. Será presumida quando o adquirente tinha razões para conhecer a situação financeira do transmitente, como no segundo exemplo. Caracteriza fraude contra credores a conduta daquele que assume dívidas ou por elas se obriga como garante, e, pressentindo a impossibilidade de liquidá-las na forma contratada, realiza alienações e onerações entre amigos íntimos e parentes em detrimento dos credores, fato que, por si só, induz a inexistência de boa-fé. Ap. 22.738-4/3 2. Câm. D. Privado do TJSP j. 12.05.1998 re. Des.Francisco de Assis Vasconcellos Pereira da Silva. (RT 755/242) 3) pagamento de dívida não vencida a credor quirografário (sem garantia real) por parte de devedor insolvente, existindo concurso de credores. Tratando-se de dívida vencida não há fraude, pois inexiste má-fé por parte do credor. Se o pagamento de dívida não vencida foi efetuado a credor com garantia real também não há fraude, pois esse pagamento não prejudica aos credores quirografários. Todavia, se o pagamento antecipado da dívida ultrapassar o valor do bem entregue em garantia, ocorre a fraude. Isso ocorre porque o valor restante é equiparado a crédito quirografário; 4) garantias •••
Iuli Ratzka Formiga (*)