Da (in)exigibilidade da escritura pública nos negócios imobiliários - Parte I
INTRODUÇÃO O presente trabalho propõe uma reflexão acerca da importância da formalização dos negócios envolvendo direitos reais sobre imóveis através do instrumento público, estudando o art. 108 do Código Civil e as demais disposições excepcionais da lei que dispensam a lavratura da escritura pública, fazendo um alerta para os riscos que podem advir dessa opção. Na tentativa de demonstrar a segurança jurídica proporcionada pela forma pública o trabalho faz uma abordagem geral sobre a escritura pública e sobre todas as suas repercussões. Para um melhor entendimento do tema também é examinado o instrumento particular e a sua utilização em negócios jurídicos imobiliários, revelando as consequências da regularização do imóvel através deste caminho. Por fim, o artigo culmina na análise das vantagens da celebração do negócio jurídico imobiliário através de escritura pública detalhando os inúmeros benefícios que da sua utilização podem advir às partes e ao negócio. 1. DA ESCRITURA PÚBLICA 1.1. Considerações Iniciais O tabelião de notas possui uma atividade exclusiva e única que é especialmente regulada pelo artigo 7º da Lei 8.935, de 18 de novembro de 1994, conhecida como a Lei dos Notários e Registradores e dispõe das seguintes atribuições: “Art. 7º. Aos tabeliães de notas compete com exclusividade: I – lavrar escrituras e procurações públicas; II – lavrar testamentos públicos e aprovar os cerrados; III – lavrar atas notariais; IV – reconhecer firmas; V – autenticar cópias. Parágrafo único. É facultado aos tabeliães de notas realizar todas as gestões e diligências necessárias ou convenientes ao preparo dos atos notariais, requerendo o que couber, sem ônus maiores que os emolumentos devidos pelo ato.” Dentre as várias atividades enumeradas no texto da lei consta a prerrogativa privativa de lavrar escrituras públicas (inciso I), que constitui uma das principais atividades realizadas pelo Tabe-lionato de Notas. A escritura corporifica o instrumento utilizado para formalizar a vontade das partes em transferir e receber a propriedade imóvel, tornando tal ato oficial e público, gerando assim publicidade e segurança ao que as partes pretendam dar forma jurídica. A partir da regra estabelecida no art. 104 do Código Civil que determina que o negócio jurídico requer para sua validade “forma prescrita ou não defesa em lei” (inciso III), observa-se que a sistemática da atual legislação inspirou-se na forma livre, o que significa dizer que a validade da declaração de vontade somente necessitará de forma especial quando explicitamente a norma legal exigir e o art. 107 do Código Civil corrobora essa orientação afirmando que: “A validade das declarações de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente exigir”. Seguindo essa orientação, apenas excepcionalmente o ato deverá respeitar uma determinada forma, restando a liberdade de escolha entre o instrumento particular ou público para os demais casos. Assim, esse instrumento que pode ser público ou particular representa o “veículo criador de um ato ou negócio” (VENOSA, 2009, p. 643), enquanto o instrumento público é criado por oficial público, o instrumento particular elaborado por profissional privado vale como prova dos negócios jurídicos caso a lei não exija forma especial. De qualquer modo, o instrumento público, por ser excepcional, é apenas imprescindível para realizar negócios jurídicos quando há determinação legal, pois não havendo o instrumento particular bastará como prova do negócio jurídico realizado. Referidas considerações são fundamentais para abordar a liberalidade atribuída pelo art. 108 do Código Civil, uma vez que se pretende analisar a possibilidade de lavratura de instrumentos particulares nos negócios jurídicos imobiliários e suas consequências, partindo do pressuposto que enquanto a escritura pública traduz segurança jurídica para as partes, o instrumento particular pode trazer vários riscos ao negócio. 1.2. O Artigo 108 do Código Civil Dispõe o art. 108 do Código Civil: “Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País.” Como se denota, o texto legal determina a realização da escritura pública para validar os negócios jurídicos que visam constituir, transferir, modificar ou renunciar direitos reais sobre imóveis. A obrigatoriedade, entretanto, restringe-se aos imóveis cujo valor seja superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País. Referida exigência apenas se impõe no caso de não existir outra disposição legal em sentido contrário. Observa-se, assim, o estabelecimento de uma forma única que não pode ser substituída por outra, passando a ser a escritura pública, nesses casos, a maneira exclusiva de validar alienações imobiliárias, já que a realização por outro meio invalida o negócio jurídico. Poder-se-ia, neste ponto, questionar a real intenção do legislador ao possibilitar a realização de atos jurídicos de mesma natureza real ora por meio de escritura pública, ora por instrumento particular, baseado exclusivamente no valor do bem. Nas palavras de Valestan Milhomem da Costa (2011): “Não há dúvida que o legislador se distraiu da essência do artigo 108 do Código Civil quando flexibilizou a indispensabilidade da escritura pública para negócios jurídicos levando em conta o valor do imóvel. [...] Dita norma tem grande relevância no campo dos negócios jurídicos imobiliários, exigindo indivisa atenção dos profissionais do direito, sobretudo daqueles que mourejam nas atividades notariais e registrais, pois baliza forma indispensável à produção dos efeitos pretendidos sempre que o negócio se referir a direitos reais sobre imóveis, onde a regra é a escritura pública, excetuando-se os casos previstos em lei especial – sendo especial, não é aplicável a hipóteses não contempladas – e os casos em que o valor do imóvel não ultrapassar a 30 vezes o maior salário mínimo vigente no País. Fora isso, nenhum negócio envolvendo direitos reais sobre imóveis pode ser realizado sem escritura pública, sob pena de ser tido como não realizado, por inobservância da forma prescrita em lei, essencial à validade do negócio, não podendo, inclusive, e a toda evidência, ser registrado no Cartório do Registro de Imóveis, por submissão ao princípio da legalidade.” Na atual sistemática, contudo, inegável que o instrumento particular pode ser utilizado para realizar negócios jurídicos que envolvam bens imóveis de valor inferior ou mesmo igual a trinta salários mínimos. Por evidente que existindo legislação especial estabelecendo uma forma específica para o ato, dispensando ou exigindo a escritura pública, ou mesmo autorizando o instrumento particular, esta deverá ser observada em detrimento ao art. 108 do Código Civil que institui disposição de caráter geral. Atenção especial, entretanto, deve ser dada à parte final do •••
Sheila Luft Martins*