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BDI Nº.19 / 2011 - Assuntos Cartorários Voltar

Oficial de cartório deve pagar compensação por duplicidade de registros falsos

Recurso Especial nº 1.134.677 - PR (2009/0158264-0) Relatora: Ministra Nancy Andrighi Recorrente: Rosemari Marques Advogado: Waldemar Cofes Nunes e outro(s) Recorrido: Luiz Marcelo Rezende Julião Advogado: Sem Representação nos Autos Direito civil. Responsabilidade civil do registrador público. Lavratura de assento de nascimento com informações inverídicas. Falha na prestação do serviço. Filha privada do convívio materno. Danos morais. Valor da compensação. Majoração. 1. A doutrina e a jurisprudência dominantes configuram-se no sentido de que os notários e registradores devem responder direta e objetivamente pelos danos que, na prática de atos próprios da serventia, eles e seus prepostos causarem a terceiros. Precedentes. 2. Da falta de cuidado do registrador na prática de ato próprio da serventia resultou, inequivocamente, a coexistência de dois assentos de nascimento relativos à mesma pessoa, ambos contendo informações falsas. Essa falha na prestação do serviço, ao não se valer o registrador das cautelas e práticas inerentes à sua atividade, destoa dos fins a que se destinam os registros públicos, que são os de “garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos”, assim como previsto no art. 1º da Lei n.º 8.935, de 1994. 3. O dano moral configurou-se ao ser privada a vítima, ao longo de sua infância, adolescência e início da vida adulta, do direito personalíssimo e indisponível ao reconhecimento do seu estado de filiação, conforme disposto no art. 27 do ECA, desrespeitando-se a necessidade psicológica que toda a pessoa tem de conhecer a sua verdade biológica. Consequentemente, foi despojada do pleno acesso à convivência familiar, o que lhe tolheu, em termos, o direito assegurado no art. 19 do ECA, vindo a lhe causar profunda lacuna psíquica a respeito de sua identidade materno-filial. 4. É da essência do dano moral ser este compensado financeiramente a partir de uma estimativa que guarde alguma relação necessariamente imprecisa com o sofrimento causado, justamente por inexistir fórmula matemática que seja capaz de traduzir as repercussões íntimas do evento em um equivalente financeiro. Precedente. 5. Para a fixação do valor da compensação por danos morais, são levadas em consideração as peculiaridades do processo, a necessidade de que a compensação sirva como espécie de recompensa à vítima de sequelas psicológicas que carregará ao longo de toda a sua vida, bem assim o efeito pedagógico ao causador do dano, guardadas as proporções econômicas das partes e considerando-se, ainda, outros casos assemelhados existentes na jurisprudência. Precedentes. 6. Recurso especial provido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, prosseguindo no julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro Sidnei Beneti, por maioria, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Vencido o Sr. Ministro Massami Uyeda que negava provimento. Os Srs. Ministros Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino e Vasco Della Giustina votaram com a Sra. Ministra Relatora. Brasília (DF), 07 de abril de 2011(Data do Julgamento) Ministra Nancy Andrighi, Relatora RELATÓRIO Cuida-se de recurso especial interposto por Rosimari Marques com fundamento nas alíneas “a” e “c” do permissivo constitucional, contra acórdão exarado pelo TJ⁄PR. Ação (inicial às e-STJ fls. 6⁄16): de indenização, ajuizada por Rosimari Marques em face de LUIZ Marcelo Rezende Julião, Oficial do Cartório de Registro Civil do 2º Ofício da Comarca de Londrina-PR. A autora sustenta, como causa de pedir, a falsidade constante dos assentos dúplices de seu nascimento, ambos lavrados sob o mesmo número (nº 1.969), mesmas folhas (091-v) e mesmo livro (A-014), emitidos pelo Cartório de Registro Civil do 2º Ofício da Comarca de Londrina-PR, de titularidade do réu, oficial registrador. Demonstra que, no primeiro registro, com data de 3.8.1976, constam como genitores seus avós paternos, Manoel Marques e Conceição Ferraz Marques, sendo esta última a declarante; no segundo registro, com data de 7.8.1976, consta corretamente o nome do pai biológico, Hamilton Marques, e, como mãe, a esposa dele, Maria José Marques, tendo sido declarante a avó paterna, Conceição Ferraz Marques. Relata que somente em meados de 1999 tomou conhecimento acerca da verdadeira identidade de sua mãe biológica, Nilva Aparecida Schiavon, de modo que foi, ao longo de sua infância, adolescência e início da vida adulta, “privada da ciência e companhia de sua verdadeira genitora” (e-STJ fl. 8). Assere que o titular do Cartório de Registro Civil do 2º Ofício da Comarca de Londrina-PR, em razão de “ato pessoal ou de preposto seu”, deve responder civilmente, de forma a arcar com as despesas concernentes a necessária ALTERAÇÕES (sic) dos registros de NASCIMENTO da Autora e transtornos, incômodos, preocupações, expectativas, nervosismo e qualquer outra forma de alterações (sic) psicossomática ou físico-emocional, que configuram o DANO MORAL ou aquele sofrido pela pessoa prejudicada pelo ilícito (e-STJ fl. 9 – com destaques no original). Sentença (e-STJ fls. 136⁄143): julgou improcedente o pedido, não obstante a decretação de revelia do registrador, ao entendimento de que ele teria sido induzido a erro pelos avós paternos e pelo pai da autora, o que afastaria a sua responsabilidade civil pelas informações inverídicas contidas nos assentos de nascimento de Rosimari Marques. Acórdão (e-STJ fls. 212⁄226): em acolhimento ao parecer emitido pelo MP⁄PR (e-STJ fls. 194⁄199),o TJ⁄PR deu provimento ao recurso de apelação interposto pela recorrente para, com base na “concorrência de culpas” entre o registrador, os avós paternos e o pai da recorrente, condenar o primeiro a pagar à vítima dos dúplices registros falsos, o valor de R$ 3.500,00 (três mil e quinhentos reais), a título compensação dos danos morais, com correção monetária e juros de mora de 1% a partir da decisão. Segue a ementa: APELAÇÃO CÍVEL – INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS – EXISTÊNCIA DE DOIS REGISTROS DE NASCIMENTO DA AUTORA COM INFORMAÇÕES INVERÍDICAS – PRIMEIRO REGISTRO – AVÓS PATERNOS DECLARADOS COMO PAIS DA AUTORA – NOVO REGISTRO INFORMANDO O VERDADEIRO NOME DO PAI, MAS COM NOME DA MÃE INCORRETO – OFICIAL DO REGISTRO QUE NÃO AGIU COM A DEVIDA CAUTELA – DÚVIDA SOBRE O ASSENTAMENTO QUE DEVERIA TER SIDO LEVADA AO JUIZ COMPETENTE – ARTS. 52, §1º E 109, DA LEI 6.015⁄73 – PAIS E AVÓS QUE PRESTARAM DECLARAÇÕES FALSAS – CULPA CONCORRENTE – DANO MORAL CARACTERIZADO – INDENIZAÇÃO DEVIDA – INVERSÃO DOS ÔNUS DA SUCUMBÊNCIA – HONORÁRIOS FIXADOS EM 20% SOBRE O VALOR DA CONDENAÇÃO – ART. 20, § 3º, DO CPC – RECURSO PROVIDO (e-STJ fl. 212). Recurso especial (e-STJ fls. 264⁄281): interposto sob alegação de ofensa aos arts. 159, 904 e 913, do CC⁄16; 186, 189, 275, 283, 884 e 927, do CC⁄02; 2º, 6º, 126, 131, 282, II, do CPC; além de dissídio jurisprudencial. Prévio Juízo de admissibilidade recursal (e-STJ fls. 293⁄294): o recurso especial não foi admitido. Decisão (cópia à e-STJ fl. 376): o agravo de instrumento (Ag 1.017.908⁄PR), interposto pela recorrente contra a decisão que inadmitiu o recurso especial, foi provido. Parecer do MPF (e-STJ fls. 412⁄414): o Parquet apresentou parecer da lavra do i. Subprocurador-Geral da República Durval Tadeu Guimarães, opinando pelo provimento do recurso especial. É o relatório. VOTO A Exma. Sra. Ministra Nancy Andrighi (Relatora): I. Da delimitação da lide e de sua base fática. A lide versa a respeito da responsabilidade civil de registrador público por lavratura de segundo assento de nascimento da mesma pessoa, sem anulação prévia do já existente, contendo, ambos os registros, informações inverídicas, que privaram a filha do conhecimento e do convívio com a mãe biológica. Apresenta-se, ainda, para discussão, a viabilidade ou não da incidência de culpa concorrente entre o registrador e outros possíveis causadores do dano: os avós paternos e o pai biológico da vítima – assim indicados no acórdão recorrido –, ainda que não figurem como partes no processo. Busca-se, por fim, aferir a proporcionalidade e a razoabilidade na fixação do valor da compensação dos danos morais, decorrentes da “existência do erro presente na ocasião da lavratura das duas Certidões” (e-STJ fl. 112), conforme reconhecido e declarado em Juízo, nos autos de precedente ação de impugnação de maternidade cumulada com anulação de ato jurídico. Para uma melhor elucidação da lide, segue a base fática descrita no parecer emitido pelo MP⁄PR, bem como a análise acerca da responsabilidade civil do registrador contida no acórdão recorrido: Parecer emitido pelo MP⁄PR: Consta dos autos que quando de seu nascimento, ocorrido em 25 de julho de 1976, na cidade de Londrina, a mãe biológica da autora, NILVA APARECIDA SCHIAVON, por não ter condições de criar e educar a criança entregou-a para o pai biológico, HAMILTON MARQUES, para que este a registrasse em nome de ambos. Todavia, o Sr. Hamilton Marques assim não procedeu e pediu ao pai dele, MANOEL MARQUES, que registrasse a neta como sendo filha. Assim, a Sra. CONCEIÇÃO FERRAZ MARQUES, avó da autora, compareceu ao Cartório de Registro Civil do 2º Ofício da Comarca de Londrina e solicitou que o registro de nascimento da autora fosse lavrado (fls. 16) em seu nome e em nome de seu marido, isto em 03 de agosto de 1976. Posteriormente, provavelmente arrependido do que havia feito, o pai da autora tentou remediar a situação e assim foi lavrado novo registro de nascimento da autora, com o mesmo número, mesmas folhas do mesmo livro, porém com filiação diferente do primeiro (fls. 17), datado de 07 de agosto de 1976, onde consta como declarante a avó paterna, CONCEIÇÃO FERRAZ MARQUES. No segundo registro de nascimento, lavrado quatro dias após o primeiro, consta corretamente o nome do pai biológico e dos avós paternos, todavia constou como sendo a mãe da criança a mulher de Hamilton Marques, Sra. MARIA JOSÉ MARQUES, que evidentemente não era a mãe biológica. Assim a autora conviveu com seu pai biológico, pensando que era seu irmão, até o ano de 1988, quando o mesmo lhe revelou que na realidade era seu pai e não o seu irmão. Também disse que os pais da autora eram na verdade seus avós. Mais tarde, em época não especificada nos autos, soube a autora, através de sua avó paterna, que a mãe biológica dela se chamava NILVA APARECIDA SCHIAVON, quando então pediu informações ao Hospital Evangélico de Londrina, para em seguida procurar sua verdadeira mãe, que confirmou os fatos. (...) Considerando o breve período em que foram lavrados os dois assentos de nascimento da autora – quatro dias – bem como o fato de que ambos foram registrados às mesmas folhas, sob mesmo número e no mesmo livro, sem que o primeiro tenha sido cancelado em razão da lavratura do segundo; que o prenome da criança, bem como o nome, era o mesmo, ou seja, ROSEMARI MARQUES; e principalmente porque em ambos os registros a declarante foi a mesma – Sra. CONCEIÇÃO FERRAZ MARQUES; o réu, na qualidade de oficial do cartório de registro civil, deveria necessariamente ter comunicado os fatos ao juiz da vara de registros públicos da comarca, buscando orientação de como proceder, pois ficou evidente que as declarações do primeiro registro não eram verdadeiras – prática, em tese, do crime previsto no artigo 242, CP (registrar, como seu, filho de outrem) – já que a parte compareceu e pediu a lavratura de um segundo registro de nascimento, da mesma criança. Somente esta circunstância aponta para a manifesta negligência do Oficial do Cartório de Registro do 2º Ofício da Comarca de Londrina – LUIZ MARCELO REZENDE JULIÃO – que, no exercício de sua função pública, não agiu como deveria, foi negligente, causando assim os danos morais experimentados pela autora (e-STJ fls. 197⁄198 – com destaques no original). Acórdão proferido pelo TJ⁄PR: A questão a respeito da filiação da Autora foi desmascarada nos autos de impugnação de maternidade c⁄c anulação de ato jurídico (fls. 68⁄71), em que a prova testemunhal foi extremamente elucidativa. É certo que o cartorário poderia retificar o registro de nascimento da autora, mas para isso deveria ter observado os trâmites legais. Assim, presente o ilícito no fato de não observar a legislação, efetivando uma retificação ilegal. (...) É de se ressaltar que, quando da feitura do primeiro registro, não há culpa alguma por parte do cartorário, uma vez que efetuado de acordo com as declarações da suposta mãe, como era costume, na época. Porém, quanto ao segundo registro de nascimento, já não se pode afirmar o mesmo. É que no caso o nome dos pais da autora foi alterado, sem que o Oficial de Registro adotasse as devidas cautelas. (...) Ora, quatro dias depois da lavratura do primeiro acento (sic), o fato de aparecer outra pessoa se declarando pai da autora, já era suficiente para gerar dúvida a respeito da segunda declaração. E, se assim tivesse procedido, a dúvida teria sido remetida a juízo, onde se verificaria (fls. 35⁄44) que a mãe da criança não era MARIA JOSÉ MARQUES, muito menos CONCEIÇÃO FERRAZ MARQUES, mas sim, NILVA APARECIDA SCHIAVON. Veja-se que a retificação de assentamento de registro civil só pode ser feita através de procedimento judicial, “em petição fundamentada e instruída com documentos ou com indicação de testemunhas, que o juiz ordene, ouvido o Ministério Público e os interessados, no prazo de cinco dias, que correrá em cartório” (art. 109, da LRP). (...) Assim, conforme restou demonstrado nos autos, houve negligência por parte do cartorário, que não cumpriu as disposições legais, ou seja, não suscitou a competente dúvida, a ser dirimida pelo juízo daquela circunscrição. Ademais, a negligência restou confessada pelo próprio funcionário, pois quando citado para contestar o feito, manteve-se inerte. Resta presente, inegavelmente, (...) a culpa do Apelado – por negligência. Por outro lado, também é clara a culpa dos avós e pais da autora. Em primeiro lugar porque os avós, conforme eles mesmos reconhecem em seu depoimento, prestaram declaração falsa, induzindo em erro o Oficial de Registro. Em segundo lugar, porque o pai da autora também prestou declaração falsa, dizendo que a mãe da autora seria MARIA JOSÉ MARQUES e não NILDA APARECIDA SCHIAVON. Fatos estes que foram, inclusive, confirmados pelo pai e mãe da autora. NILVA APARECIDA SCHIAVON declarou que: “há época não tinha condições de criar a filha, sendo que o pai Hamilton assumiu os cuidados. Que o compromisso do Sr. Hamilton era registrar a criança em seu nome e em nome da depoente. Que somente mais tarde descobriu que a criança havia sido registrada como sendo os pais de Hamilton – avós paternos – como •••

(STJ)