ALGUNS PROBLEMAS PRÁTICOS NO REGISTRO DA HIPOTECA (*)
Introdução A hipoteca reinou soberana como direito real de garantia no registro de imóveis brasileiro desde a Lei nº 317, de 21.10.1843, que criou o registro geral da hipoteca, até a instituição da alienação fiduciária de bem imóvel pela Lei nº 9.514/97, visando impulsionar o mercado imobiliário em razão das mazelas da hipoteca quanto à lentidão na recuperação do crédito. Desde então a contratação da hipoteca e seu consequente registro nas serventias prediais vem minguando acentuadamente, sendo os poucos casos atrelados a operações de financiamento entre particulares que desconhecem as vantagens da alienação fiduciária de coisa imóvel. Contudo, isso não significa perda da importância prática da hipoteca para os registradores de imóveis no Brasil, que continuam a militar com as particularidades da sua existência, precipuamente em razão das hipotecas constituídas até 1990, e pouco depois disso. De modo que a hipoteca ainda constitui questão de interesse para os registradores de imóveis e continuará a fazer parte do seu cotidiano por diversas questões relacionadas ao seu cumprimento, extinção e cancelamento; como demonstraremos à frente. Das possibilidades de hipoteca O artigo 1.420 do Código Civil estabelece: ´só aquele que pode alienar pode hipotecar e só os bens que se podem alienar poderão ser dados em hipoteca´. A regra constitui diretriz básica acerca da legitimidade do sujeito e do objeto que devem merecer atenção especial do registrador de imóveis na qualificação dos títulos hipotecários apresentados para registro, mediante cotejo com o disposto nos artigos 1.228 e 1.473 do Código Civil. Apesar de viger desde o Código de 1916 (art. 756), tal diretriz ainda é o cerne das dúvidas envolvendo títulos hipotecários no Registro de Imóveis. Exemplificando, é comum devolução de títulos de hipoteca em razão de estar o imóvel penhorado, sob o argumento de que, estando o imóvel penhorado não poderia ser alienado, e, por consequência, hipotecado. Os registradores que veem na penhora um obstáculo ao registro da hipoteca, ou de uma alienação fiduciária, entendem que se o bem está individualizado e reservado para satisfazer um crédito em execução, não seria mais possível ao proprietário constituir ônus sobre aquele bem, pois tal ônus, sendo “posterior à hipoteca”, seria caracterizador da fraude de execução cogitada no artigo 240 da Lei nº 6.015/73. Esquecem-se, de que a penhora não constitui indisponibilidade plena do bem, mas apenas indireta (Rocco) ou relativa (Teodoro), desde que conste do título a ciência do adquirente da existência da constrição judicial, sem a qual, naturalmente, não deveria o título ser admitido a registro, em atenção ao princípio da boa-fé (objetiva) (art. 421, CC). Apesar do zelo motivador desse tipo de qualificação - e apenas ad argumentandum -, o zelo, por si só, não constitui base jurídica para fundamentar a qualificação de um título, negativa ou positivamente. No que tange ao exame do registro da hipoteca, o norte que deve orientar o registrador é o disposto no artigo 1.420 do Código Civil, segundo o qual ‘quem pode alienar, pode hipotecar’. Em relação à oneração (ou mesmo alienação) do bem penhorado, é bom lembrar que tais negócios não têm eficácia em relação ao credor da penhora, que continuará com a preferência para realização do seu crédito sobre aquele bem, salvo na hipótese de insolvência do devedor proprietário, hipótese na qual terá o credor da execução oportunidade para denunciar a fraude de execução, na forma do art. 768 do CPC, cujo registro, provada a fraude, poderá ser anulado, nos termos do art. 216 da Lei nº 6.015/73. Estas, porém, são questões de alta indagação que refogem ao exame qualificador do título. Contudo, a regra geral de hipotecar bem penhorado é excepcionada na penhora decorrente de execução de crédito inscrito em Dívida Ativa da União, suas autarquias e fundações, pois a penhora, nesse caso, torna indisponível o bem por determinação legal (art. 53, § 1º da Lei nº 8.212/90). Se o bem está indisponível não poderá ser alienado. Do mesmo modo não poderá ser onerado (hipotecado). Por outro lado, nenhum direito real de garantia torna o bem indisponível. Assim, não obstante as qualidades conferidas à alienação fiduciária de bem imóvel, que conferem maior praticidade, economia e celeridade na recuperação do crédito pela execução da dívida mediante procedimento administrativo, a constituição da propriedade fiduciária não constitui impedimento à constituição da hipoteca sobre o mesmo bem, independentemente do consentimento do credor fiduciário. A Lei nº 9.514/97 exige a anuência do fiduciário para a transmissão dos direitos do fiduciante sobre o bem. Contudo, a constituição de hipoteca não configura hipótese de transmissão de direito real, mas de constituição de um direito real de garantia, um ônus sobre o bem, de natureza transitória e acessória, sem nenhuma interferência sobre o negócio fiduciário que lhe é anterior. Frise-se, porém, que somente quem pode alienar pode hipotecar. Assim, a hipoteca do bem alienado fiduciariamente poderá ser constituída somente por quem pode transmitir direitos sobre o bem, ou seja, pelo devedor fiduciante, como evidencia o artigo 29 da Lei nº 9.514/97: Art. 29. O fiduciante, com anuência expressa do fiduciário, poderá transmitir os direitos de que seja titular sobre o imóvel objeto da alienação fiduciária em garantia, assumindo o adquirente as respectivas obrigações. Porém, o fiduciante somente poderá hipotecar o imóvel alienado fiduciariamente enquanto não ocorrer a consolidação da propriedade resolúvel na pessoa do fiduciário. Após a consolidação da propriedade resolúvel, somente o fiduciário poderá transmitir direitos sobre o imóvel. Primeiro, na fase dos leilões, para a execução do seu crédito. Após os leilões, não havendo arrematação, ocorrendo a extinção da dívida e a liberação do devedor (art. 27, § 5º, Lei nº 9.514/97), sem prejuízo da obrigação do credor de conferir termo de quitação ao devedor (art. 27, § 6º), ficará o fiduciário (ou ex-fiduciário) investido na propriedade plena do bem, na conformidade do art. 1.228 do Código Civil. Logo, a hipoteca é possível em todos os casos de possibilidade de alienação do bem ou de direito real sobre o bem (art. 1.473, incisos I a X, CC), inclusive do direito suspensivo de propriedade. Quanto a esta última hipótese, estatui o Código Civil (art. 1.420, § 1º) que, constituído o direito de propriedade que estava suspenso, a hipoteca vale desde o registro do título respectivo. Dos interessados para requerer o registro da hipoteca O parágrafo único do art. 1.492 do Código Civil diz que “compete aos interessados, exibido o título, requerer o registro da hipoteca”. Gladston Mamede, citado por Carlos Alberto Dabus Maluf (in Código Civil Comentado, 6ª ed. Revista e Atualizada, Saraiva, 2008), comentando o dispositivo, esclarece a referência aos interessados, “vale dizer, credor, devedor ou terceiro prestador da garantia real por dívida alheia”, sendo o registro da hipoteca requerido mediante apresentação do título causal no órgão competente. Estaria o parágrafo único do art. 1.492 do Código Civil excepcionando a regra geral do art. 217 da Lei nº 6.015/73, de que qualquer pessoa pode provocar o registro? Walter Ceneviva esclarece que “os sujeitos passivos da obrigação de registrar (art. 169) são as pessoas com interesse no registro”. “Entretanto”, diz, “qualquer pessoa pode provocá-lo”. (Lei dos Registros Públicos Comentada, 15ª edição atualizada até 1º de outubro de 2002, Saraiva, pág. 440). Destarte, ao mencionar que “compete aos interessados [...] requerer o registro” quer o Código Civil apenas destacar os sujeitos passivos da obrigação de registrar, sem, contudo, criar norma especial de competência para requerer o registro da hipoteca, o qual poderá ser provocado por qualquer pessoa (art. 217, LRP). Tal providência nenhum prejuízo trará aos interesses dos contratantes nem ao sistema registral imobiliário, pois, na célebre frase de Lacerda de Almeida, citado por Maria Helena Diniz, “hipoteca não registrada é hipoteca inexistente” (Sistemas de Registros de Imóveis, 4ª edição, revista, aumentada e atualizada de acordo com o novo Código Civil Saraiva, 2003). Do desmembramento do ônus hipotecário O artigo 1.488 do Código Civil diz: “Se o imóvel, dado em garantia hipotecária, vier a ser loteado, ou se nele se constituir condomínio edilício, poderá o ônus ser dividido, gravando cada lote ou unidade autônoma, se o requererem ao juiz o credor, o devedor ou os donos, obedecida a proporção entre o valor de cada um deles e o crédito”. Para Jones Figueiredo Alves e Mário Luiz Delgado, citados por Carlos Alberto Dabus Maluf (op. cit.), “o dispositivo representa importante inovação, ao permitir a divisão do ônus da hipoteca, sempre que o imóvel dado em garantia vier a ser loteado posteriormente ou se nele se constituir condomínio edilício”. (Grifo acrescentado). Na opinião de Silvio Venosa (in “A hipoteca no novo Código Civil”, artigo publicado no Jornal Valor Econômico em 22.2.2002), “ocorre com freqüência que um imóvel de apartamentos em construção ou um imóvel de um empreendimento como um futuro loteamento aberto ou fechado seja dado em hipoteca. Essa hipoteca, como é evidente, de início onera a totalidade do imóvel. Posteriormente, quando instituído o condomínio e passam a ser vários os adquirentes-condôminos, a totalidade do imóvel continua gravada. Essa situação tem gerado questões complexas, gerando problemas sociais quando, por exemplo, o empreendedor originário se torna insolvente ou vai à bancarrota. Pois não sem atraso em nosso ordenamento, o art. 1.488 do novo Código Civil procura socorrer essas situações”. “Desse modo”, continua, “torna-se um direito dos proprietários de cada unidade desmembrada do imóvel originário, [...] requerer que a hipoteca grave, proporcionalmente cada lote ou unidade condominial”. (Grifos nossos). Por fim, lembra “que o dispositivo não esclarece se cada titular do domínio, isoladamente, pode requerer essa divisão no tocante ao seu próprio quinhão”, entendendo que “a melhor opinião é, sem dúvida, nesse sentido, pois exigir que todos o façam coletivamente, ou que a entidade condominial o faça, poderá retirar o alcance social que pretende a norma”. Destas considerações pode-se inferir que foram criadas novas facetas da hipoteca que serão objeto de qualificação no registro de imóveis. Primeiro, quanto ao ato a ser praticado quando do desmembramento da hipoteca. Segundo, quanto ao título causal desse desmembramento. Terceiro, quanto à coincidência ou não desse •••
Valestan Milhomem da Costa (*)