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BDI Nº.11 / 2010 - Jurisprudência Voltar

INVENTÁRIO E PARTILHA – CÔNJUGE SOBREVIVENTE HERDEIRO NECESSÁRIO E A LIMITAÇÃO DA AUTONOMIA DA VONTADE PRIVADA – DIREITO DE CONCORRÊNCIA HEREDITÁRIA COM DESCENDENTES DO FALECIDO – NÃO OCORRÊNCIA

Recurso Especial nº 992.749 - MS (2007/0229597-9) Relatora: Ministra Nancy Andrighi Recorrente: Gustavo Alves de Souza e outros Advogados: Paulo Benedito Neto Costa Junior e outro(s) Osmar Tognolo Recorrido: Paula Rosa de Souza Advogado: Jorge Augusto Bertin e outro(s) EMENTA Direito civil. Família e Sucessões. Recurso especial. Inventário e partilha. Cônjuge sobrevivente casado pelo regime de separação convencional de bens, celebrado por meio de pacto antenupcial por escritura pública. Interpretação do art. 1.829, I, do CC/02. Direito de concorrência hereditária com descendentes do falecido. Não ocorrência. - Impositiva a análise do art. 1.829, I, do CC/02, dentro do contexto do sistema jurídico, interpretando o dispositivo em harmonia com os demais que enfeixam a temática, em atenta observância dos princípios e diretrizes teóricas que lhe dão forma, marcadamente, a dignidade da pessoa humana, que se espraia, no plano da livre manifestação da vontade humana, por meio da autonomia da vontade, da autonomia privada e da consequente autorresponsabilidade, bem como da confiança legítima, da qual brota a boa fé; a eticidade, por fim, vem complementar o sustentáculo principiológico que deve delinear os contornos da norma jurídica. - Até o advento da Lei n.º 6.515/77 (Lei do Divórcio), vigeu no Direito brasileiro, como regime legal de bens, o da comunhão universal, no qual o cônjuge sobrevivente não concorre à herança, por já lhe ser conferida a meação sobre a totalidade do patrimônio do casal; a partir da vigência da Lei do Divórcio, contudo, o regime legal de bens no casamento passou a ser o da comunhão parcial, o que foi referendado pelo art. 1.640 do CC/02. - Preserva-se o regime da comunhão parcial de bens, de acordo com o postulado da autodeterminação, ao contemplar o cônjuge sobrevivente com o direito à meação, além da concorrência hereditária sobre os bens comuns, mesmo que haja bens particulares, os quais, em qualquer hipótese, são partilhados unicamente entre os descendentes. - O regime de separação obrigatória de bens, previsto no art. 1.829, inc. I, do CC/02, é gênero que congrega duas espécies: (i) separação legal; (ii) separação convencional. Uma decorre da lei e a outra da vontade das partes, e ambas obrigam os cônjuges, uma vez estipulado o regime de separação de bens, à sua observância. - Não remanesce, para o cônjuge casado mediante separação de bens, direito à meação, tampouco à concorrência sucessória, respeitando-se o regime de bens estipulado, que obriga as partes na vida e na morte. Nos dois casos, portanto, o cônjuge sobrevivente não é herdeiro necessário. - Entendimento em sentido diverso, suscitaria clara antinomia entre os arts. 1.829, inc. I, e 1.687, do CC/02, o que geraria uma quebra da unidade sistemática da lei codificada, e provocaria a morte do regime de separação de bens. Por isso, deve prevalecer a interpretação que conjuga e torna complementares os citados dispositivos. - No processo analisado, a situação fática vivenciada pelo casal – declarada desde já a insuscetibilidade de seu reexame nesta via recursal – é a seguinte: (i) não houve longa convivência, mas um casamento que durou meses, mais especificamente, 10 meses; (ii) quando desse segundo casamento, o autor da herança já havia formado todo seu patrimônio e padecia de doença incapacitante; (iii) os nubentes escolheram voluntariamente casar pelo regime da separação convencional, optando, por meio de pacto antenupcial lavrado em escritura pública, pela incomunicabilidade de todos os bens adquiridos antes e depois do casamento, inclusive frutos e rendimentos. - A ampla liberdade advinda da possibilidade de pactuação quanto ao regime matrimonial de bens, prevista pelo Direito Patrimonial de Família, não pode ser toldada pela imposição fleumática do Direito das Sucessões, porque o fenômeno sucessório “traduz a continuação da personalidade do morto pela projeção jurídica dos arranjos patrimoniais feitos em vida”. - Trata-se, pois, de um ato de liberdade conjuntamente exercido, ao qual o fenômeno sucessório não pode estabelecer limitações.. - Se o casal firmou pacto no sentido de não ter patrimônio comum e, se não requereu a alteração do regime estipulado, não houve doação de um cônjuge ao outro durante o casamento, tampouco foi deixado testamento ou legado para o cônjuge sobrevivente, quando seria livre e lícita qualquer dessas providências, não deve o intérprete da lei alçar o cônjuge sobrevivente à condição de herdeiro necessário, concorrendo com os descendentes, sob pena de clara violação ao regime de bens pactuado. - Haveria, induvidosamente, em tais situações, a alteração do regime matrimonial de bens post mortem, ou seja, com o fim do casamento pela morte de um dos cônjuges, seria alterado o regime de separação convencional de bens pactuado em vida, permitindo ao cônjuge sobrevivente o recebimento de bens de exclusiva propriedade do autor da herança, patrimônio ao qual recusou, quando do pacto antenupcial, por vontade própria. - Por fim, cumpre invocar a boa fé objetiva, como exigência de lealdade e honestidade na conduta das partes, no sentido de que o cônjuge sobrevivente, após manifestar de forma livre e lícita a sua vontade, não pode dela se esquivar e, por conseguinte, arvorar-se em direito do qual solenemente declinou, ao estipular, no processo de habilitação para o casamento, conjuntamente com o autor da herança, o regime de separação convencional de bens, em pacto antenupcial por escritura pública. - O princípio da exclusividade, que rege a vida do casal e veda a interferência de terceiros ou do próprio Estado nas opções feitas licitamente quanto aos aspectos patrimoniais e extrapatrimoniais da vida familiar, robustece a única interpretação viável do art. 1.829, inc. I, do CC/02, em consonância com o art. 1.687 do mesmo código, que assegura os efeitos práticos do regime de bens licitamente escolhido, bem como preserva a autonomia privada guindada pela eticidade. Recurso especial provido. Pedido cautelar incidental julgado prejudicado. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Massami Uyeda, Sidnei Beneti, Vasco Della Giustina e Paulo Furtado votaram com a Sra. Ministra Relatora. Brasília (DF), 1º de dezembro de 2009 (data do julgamento) Ministra Nancy Andrighi, Relatora RELATÓRIO Recurso especial interposto por Gustavo Alves de Souza, Ivan Ferreira de Souza Filho e Flávio Alves de Souza, com fundamento na alínea “a” do permissivo constitucional, contra acórdão exarado pelo TJ⁄MS. Procedimento especial de jurisdição contenciosa (fls. 15⁄16): inventário sob o rito de arrolamento dos bens de Ivan Ferreira de Souza, requerido pelos recorrentes, filhos e herdeiros do autor da herança, cujo óbito ocorreu em 17⁄1⁄2006. Declaram que o falecido deixou bens imóveis a inventariar e que era casado, pelo regime de separação convencional de bens, com Paula Rosa de Souza, conforme certidão de casamento, ocorrido em 5⁄3⁄2005, e escritura pública de convenção antenupcial com separação de bens, à fl. 24. Prestadas as primeiras declarações às fls. 30⁄47. Petições de Paula Rosa de Souza (fls. 83⁄84 e 87⁄89): com fundamento nos arts. 1.829, I, 1.832 e 1.845, do CC⁄02, na qualidade de cônjuge sobrevivente do inventariado, deu-se por citada para requerer vista dos autos e, manifestando discordância no que se refere à partilha, postulou sua habilitação no processo de inventário, como herdeira necessária do falecido. Decisão interlocutória (fl. 92): deferido o pedido de habilitação da viúva na qualidade de herdeira necessária, determinou o i. Juiz a manifestação dos demais herdeiros, filhos do falecido. Manifestação dos recorrentes (fls. 99⁄102): alegam os filhos do falecido que à viúva somente seria conferido o status de herdeira necessária e concorrente no processo de inventário, na hipótese de casamento pelo regime de comunhão parcial de bens, ou de separação de bens, sem pacto antenupcial. Ocorre que o regime de separação de bens, adotado pelo casal, foi lavrado em escritura pública de pacto antenupcial, com todas as cláusulas de incomunicabilidade, permanecendo a recorrida, conforme entendem os recorrentes, fora do rol de herdeiros do processo de inventário sob a forma de arrolamento de bens. Sentença (fls. 105⁄109): o pedido foi julgado procedente, para forte no art. 1.829, I, do CC⁄02, declarar Paula Rosa de Souza habilitada como herdeira de Ivan Ferreira de Souza, e determinar que o inventariante apresente novo esboço de partilha, no qual seja ela incluída e contemplada em igualdade de condições com os demais sucessores do autor da herança. Assim decidiu o i Juiz, ao entendimento de que “provado está que a requerente era casada com o \'de cujus\' sob o regime de separação de bens convencional, ou seja, foi feito um pacto antenupcial, não sendo o caso de separação obrigatória de bens, onde o cônjuge não seria considerado herdeiro necessário, daí resultando que concorre com os requeridos em partes iguais” (fl. 109). Decisão nos embargos de declaração (fls. 118⁄124): rejeitou os embargos de declaração opostos pelos recorrentes. Agravo de instrumento (fls. 2⁄14): sustentam violação ao próprio regime de separação convencional de bens, que rege a situação patrimonial do casal não só durante a vigência do casamento, mas também quando da sua dissolução, seja por separação, divórcio ou falecimento de um dos cônjuges. Informam que o “o autor da herança, foi casado, pela primeira vez com F. A. de S., falecida tragicamente em um acidente automobilístico no carnaval de 1999, sendo os Agravantes filhos desta primeira união (fls. 07⁄09). Veio ele, posteriormente, mais exatamente em 5 de março de 2005 a contrair novas núpcias com a Agravada, 31 (trinta e um) anos mais jovem, no regime da separação convencional de bens, inclusive dos aquestos, tal como está declarado expressamente na escritura do pacto antenupcial (fl.0010 do anexo). Quando do segundo casamento o falecido contava com 51 anos e a Agravada com 21 (vinte e um). Dessa segunda união não advieram filhos, até porque o quadro de poliartrite de que sofria o autor da herança, e cujos primeiros sinais surgiram nos idos de 1974, evoluía grave e seriamente, exigindo, inclusivamente, no ano de 2004 delicada intervenção cirúrgica para fixação da coluna cervical, somando-se a isso tudo a psoríase de difícil controle (fl. 0015 e 0115 verso)” (fls. 5⁄6 – grifos conforme o original). Acórdão em agravo de instrumento (fls. 168⁄171): negou provimento ao recurso, ao entendimento de que “a regra do artigo 1.829 do CC aplica-se ao cônjuge sobrevivente casado sob o regime da separação convencional” (fl. 168). Acórdão nos embargos de declaração (fls. 182⁄184): rejeitou os embargos de declaração interpostos pelos recorrentes. Recurso especial (fls. 186⁄203): interposto sob alegação de ofensa aos arts. 535 do CPC; 884, 1.639, §§ 1º e 2º, 1.687, do CC⁄02. Contrarrazões: às fls. 210⁄217. Admissibilidade recursal: às fls. 218⁄219. Parecer do MPF (fls. 224⁄227): da lavra do i. Subprocurador-Geral da República, Durval Tadeu Guimarães, em que opinou pelo conhecimento parcial e, nessa parte, pelo não provimento do recurso especial. Pedido cautelar formulado incidentalmente pelos recorrentes (fls. 230⁄234): deduzem, os recorrentes, pedido de atribuição de efeito suspensivo ao recurso especial, ao argumento de que a viúva requereu, nos autos do inventário, a remessa do processo ao partidor para que “seja feita uma partilha destinando à requerente o seu quinhão a fim de que este inventário tenha fim, recebendo cada um o seu quinhão” (fl. 231). Asseveram que o requerimento da viúva foi acolhido pelo i. Juiz, o que resultou no esboço de partilha sobre o qual já foram instados a se manifestar. Sustentam, assim, que a entrega de eventual quinhão para a recorrida, enquanto não decidida definitivamente a questão relativa à sua qualidade de herdeira, é medida que deve ser sobrestada, quer pelo fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, quer para evitar futura nulidade da partilha, na hipótese de eventual exclusão da viúva. É o relatório. VOTO A •••

(STJ)