POSSE DE BOA-FÉ – DIREITO DE RETENÇÃO QUE SE TORNA IRREGULAR COM O USO DO BEM – DEVER DO RETENTOR DE INDENIZAR O PROPRIETÁRIO COMO SE ALUGUEL HOUVESSE
Recurso Especial nº 613.387 - MG (2003⁄0216722-7) Relatora: Ministra Nancy Andrighi Recorrente: Eliseu Laborne e Valle - espólio Recorrido: José Maria Lopes Vieira e cônjuge EMENTA Direito civil. Direito de propriedade. Posse de boa-fé. Direito de retenção que se tornar irregular com o uso da coisa. Dever do retentor de indenizar o proprietário como se aluguel houvesse. - O direito de retenção assegurado ao possuidor de boa-fé não é absoluto. Pode ele ser limitado pelos princípios da vedação ao enriquecimento sem causa e da boa-fé objetiva, de forma que a retenção não se estenda por prazo indeterminado e interminável. - O possuidor de boa-fé tem o direito de retenção sobre a coisa, não sendo obrigado a devolvê-la até que seu crédito seja satisfeito, mas não pode se utilizar dela ou perceber seus frutos. Reter uma coisa, não equivale a servir-se dela. O uso da coisa retida constitui abuso, gerando o dever de indenizar os prejuízos como se aluguel houvesse. - Afigura-se justo que o proprietário deva pagar pelas acessões introduzidas, de boa-fé, no terreno e que, por outro lado, os possuidores sejam obrigados a pagar um valor, a ser arbitrado, a título de aluguel, pelo uso do imóvel. Os créditos recíprocos haverão de ser compensados de forma que o direito de retenção será exercido no limite do proveito que os retentores tenham da propriedade alheia. Recurso Especial provido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, renovando-se o julgamento, mantidos os votos anteriormente proferidos, por maioria, conhecer do recurso especial e dar-lhe provimento, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Massami Uyeda e Sidnei Beneti votaram com a Sra. Ministra Relatora. Vencido o Sr. Ministro Ari Pargendler. Brasília (DF), 02 de outubro de 2008 Ministra Nancy Andrighi Relatora RELATÓRIO A Exma. Sra. Ministra Nancy Andrighi (Relator): Cuida-se de recurso especial interposto pelo Espólio de Elizeu Laborne e Valle, com fundamento no art. 105, inciso III, alíneas “a” e “c” da Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo extinto Tribunal de Alçada do Estado de Minas Gerais. Ação: O Espólio de Elizeu Laborne e Valle ajuizou ação de arbitramento de aluguel em face de José Maria Lopes Vieira e Sílvia Pereira dos Santos Vieira. Sustentou que é proprietário de terreno que foi ocupado pelos requeridos. Ajuizou ação reivindicatória que, embora tenha sido julgada procedente, fixou o dever de reparar benfeitorias que, segundo afirma, foram avaliadas em exorbitantes R$31.000,00. Teria tentado, sem êxito, uma venda conjunta do bem e, por isso, requereu o arbitramento do valor da locação e condenação dos requeridos em seu pagamento. Em contestação, os requeridos afirmam que adquiriram o terreno há mais de 30 anos, de boa-fé, e que nela construíram ampla casa onde residem. Foram surpreendidos com o ajuizamento de ação reivindicatória pelo autor, mas houveram por bem transacionar. No acordo celebrado pelas partes, ficou ajustado que só desocupariam o imóvel quando fossem indenizados pelas benfeitorias que edificaram. Em liquidação de sentença, o valor das benfeitorias foi estipulado em R$31.000,00. Por isso, alegam que sua permanência no imóvel é justa até que haja a devida indenização. Sentença: Julgou improcedentes os pedidos por considerar que a transação havida entre as partes faz coisa julgada, não havendo que se falar em aluguel se à época as partes não o ajustaram. Acórdão: O Tribunal de origem negou provimento à apelação, mantendo a sentença. A decisão foi assim ementada: “Reivindicatória. Indenização. Cobrança de aluguel. Ausência de prova. coisa julgada. Improvimento do recurso. Denomina-se coisa julgada material a eficácia que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário. Inexistindo indício da existência de obrigação de pagar alugueres, não há como cogitar de pagamento”. Embargos de Declaração: Opostos pelo Espólio de Elizeu Laborne e Valle e rejeitados pelo Tribunal de origem. Recurso Especial: O recorrente sustentou em seu Especial que celebrou acordo para saída dos recorridos do imóvel, comprometendo-se a indenizar as benfeitorias feitas no local. Posteriormente, o valor das benfeitorias foi fixado em montante superior às suas possibilidades financeiras. Por isso, entende ser justo que os recorridos paguem o valor do aluguel. Sustentou haver violação dos arts. 128, 301, 468 e 469, CPC, porque sua pretensão não estaria obstada pela coisa julgada. Alegou, por fim, violação aos arts. 524 e 1.228, CC⁄1916, pois desnecessária a existência de um contrato de locação para a cobrança pelo uso e fruição do imóvel. Afirmou haver dissídio pretoriano. Juízo prévio de admissibilidade: O Tribunal de origem admitiu o Especial, determinando a subida dos autos ao STJ. O recurso foi inicialmente distribuído à Quinta Turma e, posteriormente, houve sua redistribuição à Terceira Turma. É o relatório. VOTO A Exma. Sra. Ministra Nancy Andrighi (Relator): Cinge-se a controvérsia a avaliar a possibilidade de que o proprietário venha a ser indenizado, a título de aluguel, pelo período em que o possuidor, autor de benfeitorias, retém o imóvel. I. Admissibilidade. Verifica-se que o art. 524, CC⁄1916, vem, desde a inicial, aparando a pretensão do recorrente e que, por tal motivo, foi abordado expressamente pelo Tribunal de origem. Houve, portanto, o necessário prequestionamento, conforme a inteligência das Súmulas 282 e 292 do STF e dos diversos precedentes do STJ (REsp 819238⁄RJ, Terceira Turma, Rel. Min. Castro Filho, DJ 26.02.2007; AgRg no Ag 769722⁄RS, Quarta Turma, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJ 11.12.2006). Isso é o quanto basta para a admissibilidade do Especial. II. Violação ao art. 524, CC⁄1916. As partes não divergem sobre os fatos, mas apenas sobre as conseqüências jurídicas que lhes devem ser atribuídas. É incontroverso que os recorridos adquiriram de boa-fé o terreno em disputa, nele construindo sua residência e que, nos autos da ação reivindicatória, celebraram transação, na qual assumiram o compromisso de desocupar o imóvel tão logo fossem indenizados pelas benfeitorias que edificaram. Confira-se: “O réu desocupará o imóvel objeto desta ação tão logo seja indenizado pelas benfeitorias que edificou, cujos valores serão apurados através de profissionais de confiança das partes; b) se no prazo de 90 (noventa) dias não houver um consenso quanto ao total indenizável, os valores serão apurados através de arbitramento por perito do Juízo (...)” (fls. 10). Não tendo havido acordo entre as partes, procedeu-se ao arbitramento judicial, que apontou o valor de R$31.000,00 para as benfeitorias (fls. 20). O ressarcimento das benfeitorias não foi feito pelo recorrente, que alega não ter condições econômicas para tanto e, por isso, o imóvel permanece na posse dos recorridos, sendo por eles utilizado. Pode-se dizer, assim, que ao celebrarem transação nos autos de ação reivindicatória, as partes regularam o direito de retenção dos recorridos. Com efeito, o art. 516, CC⁄1916, é claro ao afirmar que “o possuidor de boa-fé tem direito à indenização das benfeitorias necessárias e úteis, bem como, quanto às voluptuárias, se lhe não forem pagas, a levantá-las, quando o puder sem detrimento da coisa. Pelo valor das benfeitorias necessárias e úteis, poderá exercer o direito de retenção”. Posta a questão nesses termos, é fácil perceber que a disputa gira em torno da tensão que existe entre o direito de propriedade e o direito de retenção. A questão efetivamente não é •••
(STJ)