RETIFICAÇÃO DE REGISTRO DE IMÓVEIS NA LEI 6.015/73: LIMITES E RELAÇÃO COM OS PRINCÍPIOS REGISTRAIS
1. INTRODUÇÃO Este trabalho tem por tema a retificação dos assentos dos registros de imóveis. Verificado que a matrícula, o registro ou a averbação contém uma das três irregularidades previstas no art. 212 e seguintes da lei 6.015 de 1973, o interessado pode requerer a retificação do registro, seja por via administrativa, seja por via judicial. Esse procedimento é de suma importância para o sistema de registro de imóveis, pois garante a coincidência entre o conteúdo dos assentos e a realidade do mundo, elemento essencial para a segurança e credibilidade dos registros públicos. Todavia, se mal usado, pode ser um caminho para burlar as leis de registros, o fisco e até para se tornar instrumento da ação criminosa de grileiros de terra. No presente artigo, procurou-se relacionar o procedimento de retificação aos princípios do direito imobiliário registral, de modo usá-los como guia na atuação do registrador e do magistrado. Além disso, procurou-se fazer uma reflexão sobre os limites da retificação, de modo a impedir que esta seja usada como meio de burlar o sistema legal. 2. DESENVOLVIMENTO 2.1. Previsão legal, conceito e normas gerais da retificação A retificação de registros de imóveis vem prevista no capítulo III do título V da lei 6.015 de 31 de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos), referente ao processo de registro nos serviços de registros de imóveis. Encontra-se disciplinada pelos artigos 212 a 216 dessa lei. O art. 1.247 do Código Civil também faz menção à possibilidade de retificar assentos que não exprimem a verdade. Consiste a retificação em uma averbação por meio da qual são corrigidas omissões, imprecisões e inverdades presentes nas matrículas, nos registros ou nas averbações – doravante chamados genericamente de “assentos”. Tem por objetivo garantir a coincidência entre o conteúdo desses assentos e a realidade, função essencial para manter a credibilidade dos serviços de registro e para justificar a fé pública deles. Sendo averbação, não consiste a retificação em uma substituição do assento antigo por um outro, mas sim numa alteração dele, de modo a sanar a falha encontrada. Eis aí uma das vantagens desse procedimento, pois corrige o erro registrário sem que haja substituição ou cancelamento do registro, operando-se a correção, portanto, de modo bem mais célere e menos dispendioso (DINIZ, 2007, p. 294). A retificação tem que ser requerida pelo interessado, salvo as hipóteses que preveem atuação de ofício pelo registrador. Pode ser feita por procedimento administrativo e, não havendo impugnação por parte de nenhum interessado, será realizada no próprio serviço de registro, sem nenhuma intervenção judicial (art. 231, § 5º). Havendo, porém, discordância não sanada, cessa a possibilidade de atuação do oficial, devendo o procedimento ser remetido para o juiz competente, ou seja, o juiz corregedor do serviço (art. 213, § 6º). Se possível decidir de plano ou por meio de instrumentação sumária, ele mesmo decidirá a retificação, cabendo ao registrador cumprir o mandado judicial. Se, todavia, estiverem sendo discutidas questões de maior indagação – tal como propriedade – cessa a competência da vara de registros: o procedimento de retificação deixa de ser o instrumento adequado para decidir o litígio, devendo as partes ser remetidas para as vias ordinárias, em ação julgada pelas varas cíveis (art. 213, § 6º). Da decisão de envio para as vias ordinárias não cabe recurso.[1] Didática, portanto, a divisão apresentada por Maria Helena Diniz (2007, p. 295), segundo a qual há quatro espécies de retificação: 1. a extrajudicial, feita pelo próprio serventuário, sem qualquer intervenção judicial, por requerimento do interessado ou ex officio; 2.a administrativa unilateral, cujo interesse restringe-se ao requerente, sem envolver terceiros, mas que depende de provocação do interessado, tal como a retificação de estado civil do titular; 3. a administrativa bilateral, que depende da anuência de terceiro para sua eficácia, pois envolve interesse alheio, tal como na alteração de área do imóvel. Haverá “contenciosidade”, pois os terceiros interessados podem apresentar impugnação e não chegar a um acordo. O oficial remeterá o “processo” ao juiz competente, que decide de plano ou após instrução sumária. Se questões relacionadas ao domínio forem discutidas, haverá o envio, sem recurso, para as vias ordinárias; 4. a contenciosa ordinária, que segue o rito ordinário (CPC, art. 282 e ss.), necessária quando há conflito de interesses não sanável pelo procedimento administrativo ou quando a parte sequer opta por este, provocando o judiciário. Quanto à legitimidade, segundo a lição de Ceneviva (2008, p. 470), entende-se por “interessado” aquele em cujo nome está o registro: será ele o legitimado para requerer a retificação. Segundo o mesmo autor, entende-se por “terceiro que pode ser prejudicado” quem não tem seu nome no registro, mas pode, com a retificação, sofrer ofensa em seu direito. Vale lembrar, ainda, que o registrador e o cartório não integram nenhum dos pólos da retificação. O procedimento, ainda que chegue à via judicial, não se dirige a eles, mas sim às partes envolvidas no assento. (CARVALHO, 1998, p. 168). Nesse mesmo sentido, tem-se a lição de Walter Ceneviva (1998, p. 493), que diz que “o cartório imobiliário não é parte legítima para responder a ação que pretenda anular ou modificar, em processo contencioso, algum registro.” Assim, o requerimento tem que ser instruído com a assinatura de todos os confrontantes, de modo a atestar a anuência deles com o requerimento de retificação. Faltante a assinatura de algum deles, deverá ser providenciada a notificação, nem que seja por edital (art. 213, § 3º). O parágrafo 10 do art. 213 esclarece que se entende por “confrontante” não só os proprietários, como também o condomínio geral – representado por qualquer dos condôminos -, o condomínio edilício – representado pelo síndico ou pela Comissão de Representantes – e “eventuais ocupantes” do imóvel. Estes últimos não se confundem com os meros detentores do imóvel – tal como os caseiros e demais fâmulos da posse. Têm que ser ao menos possuidores diretos do imóvel, de modo a justificar a necessidade de seu consentimento. Há duas hipóteses em que a alteração de dados dos registros independe de procedimento administrativo ou judicial de retificação (art. 213, § 11, lei 6.015/73). Uma trata da adequada descrição do imóvel rural, de acordo com o art. 176, §§ 3º e 4º e art. 225, §3º, ambos da lei 6.015/73. A outra se refere à regularização fundiária de interesse social em Zonas Especiais de Interesse Social, promovida por município ou pelo Distrito Federal, quando os lotes já estiverem cadastrados individualmente ou com lançamento fiscal há mais de vinte anos. O art. 213 da lei 6.015/73 prevê hipóteses em que a retificação ocorre diretamente, sendo provocada pelo interessado. Não podemos esquecer, todavia, que a retificação pode ocorrer de modo reflexo, como efeito de sentença judicial. É o que prevê o art. 216 da lei 6.015/73. Numa ação anulatória do título que gerou a inscrição, por exemplo, sua procedência estende seus efeitos à inscrição também, ainda que não seja cumulada com a retificação, pois a anulação do título implicará a retificação do registro. A retificação “tanto pode advir por via reflexa, em virtude de ação que ataque diretamente o título, mas repercuta na inscrição, como por via direta, em virtude de ação que ataque só a inscrição por falta de requisitos essenciais. (CARVALHO, 1998, p. 166) O conteúdo possível de ser discutido em requerimento de retificação será visto com mais detalhes no item dedicado às limitações à retificação. Importa agora dizer que se resume, basicamente, a erros de dados do imóvel – como denominação errônea do logradouro de localização ou nas medidas e confrontações -, erros na transposição de elementos do título levado a registro e erros na qualificação das partes (art. 213). 2.2. Princípios dos registros de imóveis Robert Alexy, citado por Farias & Rosenvald (2008), ensina que princípios jurídicos são ordens de otimização; normas que determinam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro do contexto jurídico e real existentes. São, portanto, as bases sobre as quais se constrói o sistema jurídico. Em outras palavras: constituem as proposições genéricas que servem de substrato para a organização de um ordenamento jurídico. Daí sua induvidosa importância no estudo das ciências jurídicas. (Farias & Rosenvald, 2008, p. 35-36) Angel Cristóbal Montes, falando mais especificamente sobre os princípios no direito imobiliário registral, ensina que os princípios se configuram como uma orientação geral, como uma direção fundamental que, informando a regulamentação imobiliária e dotando-a de sentido unitário, merece elevar-se à categoria de regra caracterizadora, de traço típico de um sistema registral. (...) Indica características, critérios ou regras de orientação pré-dominante. (Montes, 2005, p. 198) Como ocorre em todos os ramos do direito, também o direito imobiliário registral possui seus princípios informadores que devem guiar seus intérpretes e aplicadores. O conhecimento e a aplicação dos princípios é muito importante, pois sana lacunas das normas, ilumina obscuridades que os casos práticos apresentam e funciona como guia seguro sobre qual o verdadeiro intuito das normas e do sistema jurídicos. Afrânio de Carvalho (1998) aponta como princípios do registro imobiliário brasileiro o princípio da inscrição, da presunção, da prioridade, da especialidade, da legalidade (ou legitimidade), da continuidade e da instância. Discorrer detalhadamente sobre cada um desses princípios foge ao escopo deste trabalho. Vale porém, esclarecer, resumidamente, o conteúdo de cada um deles. A síntese a seguir segue, toda ela, a lição do conceituado professor Afranio de Carvalho (1998). 1. Princípio da inscrição Segundo esse princípio, a constituição, transmissão e extinção de qualquer direito real sobre imóveis só se constituirá, por ato entre vivos, depois de efetuada a inscrição no registro de imóveis. Ou seja, não basta ter o título negocial, pois é a inscrição que faz nascer todos os direitos reais. Isso se justifica porque •••
Raquel Duarte Garcia (*)