RECONHECIMENTO DA FIRMA DO TABELIÃO? Comentários sobre a fé pública notarial
1. INTRODUÇÃO Atualmente, no Brasil, diversas legislações estaduais de trânsito têm apresentado uma exigência comum: o “reconhecimento da firma do tabelião” nas operações de transferência de veículos automotores em que alguma das assinaturas tenha sido reconhecida em município ou estado diferente daquele em que se faz o registro das mesmas. Sabe-se que essa exigência legal surgiu do excesso de fraudes que vinha ocorrendo em todo o país, com a falsificação de sinais públicos dos tabeliães e, por conseqüência, a legalização de furtos e roubos de veículos, através de operações fraudulentas. Porém, o que se questiona neste trabalho é a adequação do instituto do reconhecimento de firma ao caso, bem como, em caso negativo, qual o procedimento adequado a ser adotado. Assim, o presente estudo busca analisar a exigência das legislações de trânsito brasileiras com base, principalmente, nos institutos de Direito Notarial da fé pública e do sinal público, com o objetivo de verificar sua adequação aos princípios notariais e a sua efetividade prática, diante da atual regulamentação. Busca-se, por fim, apontar alternativas de soluções para a questão, com base no estudo realizado. 2. A FUNÇÃO NOTARIAL COMO ATIVIDADE DELEGADA DO PODER PÚBLICO A atual Constituição brasileira, promulgada em 1988, dentre muitas inovações, trouxe, em seu artigo 236, disposições importantes a respeito das atividades notarial e registral, alterando substancialmente o regime das mesmas e prevendo a edição de leis regulamentadoras, a serem elaboradas posteriormente, como se pode ver, no seu texto, in verbis: Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público. § 1º Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário. § 2º Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro. § 3º O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses. Para regulamentar a atividade, foi editada a lei federal 8935/94, também chamada por alguns autores como o “Estatuto do Notário e do Registrador”, visto que traz as disposições pertinentes ao ingresso na profissão, aos direitos e deveres a ela inerentes, além das infrações e penalidades a que estão sujeitos tais profissionais, dentre outras disposições. Essa lei, em seus artigos terceiro e quinto, define quem são os profissionais por ela abrangidos, elencando algumas de suas características: Art. 3º. Notário, ou tabelião, e oficial de registro, ou registrador, são profissionais do direito dotados de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade notarial e de registro. Art. 5º. Os titulares de serviços notariais e de registro são os: I – tabeliães de notas; II – tabeliães e oficiais de registro de contratos marítimos; III – tabeliães de protesto de títulos; IV – oficiais de registro de imóveis: V – oficiais de registro de títulos e documentos e civis das pessoas jurídicas; VI – oficiais de registro civis das pessoas naturais e de interdições e tutelas; VII – oficiais de registro de distribuição. Desde a promulgação da Constituição e mesmo após a edição da lei 8935/94, são inúmeras as discussões, tanto na doutrina, quanto na jurisprudência, a respeito da natureza dos serviços notariais e de registro, bem como do regime jurídico dos profissionais da área. Atualmente, já se encontra de certa forma consolidada a idéia de que se trata de serviço público, mas exercido em caráter privado, como se depreende da própria Constituição e de sua lei regulamentadora, além da jurisprudência mais recente do STF, exarada na ADI nº 2602 de 2005, oriunda de Minas Gerais, da qual se extrai o seguinte: “Os serviços de registros públicos, cartorários e notariais são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público – serviço público não privativo. Os notários e os registradores exercem atividade estatal, entretanto não são titulares de cargo público efetivo, tampouco ocupam cargo público. Não são servidores públicos (...). Trata-se de modalidade de delegação, por meio da qual o Estado transfere aos particulares a execução de serviço de sua competência (público), para que estes prestem em seu nome e por sua conta e risco (em caráter privado), mas sob a fiscalização do delegante.” Conforme MENEZES (2007), (…) o conceito da função notarial está estabelecido na Lei nº 8935/94, art. 1º: “Serviços notariais e de registro, são os de organização técnica e administrativa destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos. (p.19) Os tabeliães, assim como os registradores, são considerados agentes públicos, da espécie delegados, conforme Hely Lopes Meirelles, que os conceitua como particulares que recebem a incumbência da execução de determinada atividade, obra ou serviço público e o realizam em nome próprio, por sua conta e risco, mas segundo as normas do Estado e sob a permanente fiscalização do delegante (p. 75). A delegação é um ato administrativo complexo – envolve várias etapas, como a realização de concurso público e sua homologação, a nomeação dos candidatos aprovados, a outorga da função, a posse, etc. -, que tem por fim investir uma pessoa em certa função, através da atribuição de poderes para exercer as atividades dela decorrentes (FOLLMER, 2004). (...) o notário brasileiro é um agente público, mas de cunho privado, pois é um profissional autônomo, independente, remunerado pelo particular que procura seus serviços, e possui, inclusive, um quadro de funcionários particulares (...) a função do notário decorre de delegação, porém com características totalmente privadas, tanto que o Estado tão-somente fiscaliza a atuação do notário (...). (FOLLMER, 2004, p. 69) Como a autora salienta, a remuneração desses profissionais decorre da percepção de emolumentos pagos pelos usuários do serviço, e a fiscalização da sua atividade cabe ao Poder Judiciário de cada Estado. Assim, percebe-se que, apesar de ingressarem na atividade através de concurso público e de exercerem uma função estatal, os notários e registradores não são servidores públicos (ocupantes de cargo público), na medida em que exercem seu mister em colaboração com o Estado, sem vínculo de subordinação, mas em seu próprio nome, a partir da delegação – são, portanto, agentes públicos delegados. Nesse sentido, apesar da autonomia que tais profissionais têm, no exercício da sua atividade, eles encontram-se subordinados às normas de Direito Público e aos princípios administrativos em geral, pois a função que exercem é pública, originalmente do Estado, transferida por delegação a eles, para prestação em caráter privado. Considerando-se que a atividade notarial, objeto deste estudo, consubtancia-se em um serviço público, delegado pelo Estado, torna-se evidente a subordinação dos delegatários às normas aplicáveis à Administração Pública •••
Luciana Generali Barni (*)