O BEM DE FAMÍLIA E O REGISTRO DE IMÓVEIS
Introdução: Origem do instituto, finalidade e aspectos constitucionais O bem de família é instituto originário do direito norte-americano. Surgiu no estado do Texas, com o chamado Homestead Exemption Act, de 26 de janeiro de 1839, quando, em meio a uma grande crise creditícia, resolveu-se isentar de penhora a pequena propriedade rural, desde que ela fosse destinada à residência do devedor [01]. A finalidade de sua instituição consiste na idéia de se salvaguardar um imóvel, destacado do restante do patrimônio da família e afetado à sua moradia, tornando-o isento da execução por dívidas futuras, salvo as de origem tributária e de taxas de condomínio referentes ao mesmo imóvel. Na verdade, a sede da proteção que exsurge do instituto do bem de família é indubitavelmente constitucional. Seu escopo primeiro é resguardar a entidade familiar, instituição reputada por nossa Constituição Federal como base de nossa sociedade, e merecedora, pois, da especial proteção do Estado [02]. Vale lembrar, o conceito de família inaugurado pelo sistema constitucional de 1988 foi sensivelmente ampliado, para abarcar não somente aquela proveniente do casamento civil, como também a decorrente de união estável, a monoparental e o casal sem filhos. Visa, ainda, ao atendimento do desiderato constitucional que eleva a moradia à categoria de direito social [03], incluindo-a entre os chamados direitos de segunda geração [04]. O princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento de nosso Estado [05], é outro princípio constitucional atendido, na medida em que se assegura ao devedor que, por mais dívidas que esse tenha, a casa onde mora com sua família estará resguardada, e não se sujeitará à penhora, garantindo-se, assim, um mínimo que lhe permita a existência digna. Homenageia, por fim, o também constitucional princípio da função social da propriedade [06], pois elege a moradia da entidade familiar, e não o pagamento de dívida, como função social mais relevante a ser cumprida pelo imóvel. “Espécies” de Bem de Família Podemos referir duas “espécies”, ou “modalidades”, de bem de família: a) bem de família legal, previsto na Lei Federal 8.009, de 1990: trata-se de medida de natureza processual, que exclui o imóvel em que a família reside de constrições judiciais por dívida. b) bem de família voluntário, previsto nos artigos 1.711 a 1.722, do Código Civil: trata-se de uma afetação feita pelo particular, destinando um imóvel em específico (eventualmente acompanhado de valores mobiliários) à residência da família. Em ambos os casos, impede-se alienação judicial do imóvel para a satisfação de dívida, o que veda, por exemplo, a instituição de hipoteca sobre imóvel já registrado como bem de família voluntário. No bem legal não se exige que a família seja proprietária exclusiva do imóvel, podendo ser, inclusive, mera possuidora. Já no bem voluntário, a propriedade deve ser plena e, pois, exclusiva para que seja possível a sua instituição. Como somente o bem de família voluntário tem repercussão no Registro de Imóveis, abordaremos de maneira sucinta o bem de família legal. Bem de Família Legal O bem de família legal, previsto na Lei 8.009, de 1990, não tem qualquer repercussão no Registro de Imóveis. Sua constituição independe do registro, operando-se ex vi legis, ou seja, à vista da lei. Por essa exata razão, constituindo o bem de família legal uma garantia inerente à moradia, podemos afirmar que ele se presta melhor a corporificar os mencionados desideratos constitucionais. Sua natureza jurídica é de garantia, de preservação de um patrimônio mínimo, um imóvel no qual possa residir a família. Vejamos o que diz a Lei 8.009/90: “Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei. Parágrafo único. A impenhora-bilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados”. Os óbices legais à constituição da garantia de impenhorabilidade em razão da natureza do bem encontram-se previstas no artigo 2º: “Art. 2º Excluem-se da impenho-rabilidade os veículos de transporte, obras de arte e adornos suntuosos. Parágrafo único. No caso de imóvel locado, a impenhorabilidade aplica-se aos bens móveis quitados que guarneçam a residência e que sejam de propriedade do locatário, observado o disposto neste artigo”. Já as ressalvas em razão da natureza do crédito exeqüendo encontram-se previstas no artigo 3º, excetuando-se o inciso VI, que refere, ainda, a origem ilícita do bem: “Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido: I - em razão dos créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias; II - pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato; III - pelo credor de pensão alimentícia; IV - para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar; V - para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar; VI - por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens. VII - por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação”. É de se frisar a lamentável previsão dos incisos II e V do art. 3.º, vez que ferem de morte a própria razão de ser do instituto, mitigando em muito a efetividade da proteção por ele conferida à entidade familiar. Desse modo, se o imóvel for dado em garantia, fica afastada a impenhorabilidade, podendo o mesmo ser alienado para a satisfação do crédito. Mais uma vez, percebemos como foram eficazmente atendidos os interesses das grandes instituições financeiras, em claro detrimento do cumprimento das finalidades constitucionais do instituto. O legislador infraconstitucional e a jurisprudência pátria firmaram o entendimento de que, ao financiar o próprio imóvel, ao dá-lo em garantia real e ao figurar como fiador em contrato de locação, o indivíduo estaria abdicando, por manifestação inequívoca de vontade própria, da garantia do bem de família, para a nossa total consternação. É de se perguntar se a dignidade da pessoa humana é direito disponível. Indigna deveria ser, data venia, essa verdadeira infâmia jurídica. O artigo 4º faz ressalva à hipótese de o devedor, de má-fé, agir de maneira fraudulenta: “Art. 4º Não se beneficiará do disposto nesta lei aquele que, sabendo-se insolvente, adquire de má-fé imóvel mais valioso para transferir a residência familiar, desfazendo-se ou não da moradia antiga. § 1º Neste caso, poderá o juiz, na respectiva ação do credor, transferir a impenhorabilidade para a moradia familiar anterior, ou anular-lhe a venda, liberando a mais valiosa para execução ou concurso, conforme a hipótese. § 2º Quando a residência familiar constituir-se em imóvel rural, a impenhorabilidade restringir-se-á à sede de moradia, com os respectivos bens móveis, e, nos casos do art. 5º, inciso XXVI, da Constituição, à área limitada como pequena propriedade rural”. O caput do artigo 5º explicita o conceito de imóvel de residência da família, de que trata o artigo 1º: “Art. 5º Para os efeitos de impenhorabilidade, de que trata esta lei, considera-se residência um único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade familiar para moradia permanente. Parágrafo único. Na hipótese de o casal, ou entidade familiar, ser possuidor de vários imóveis utilizados como residência, a impenhorabilidade recairá sobre o de menor valor, salvo se outro tiver sido registrado, para esse fim, no Registro de Imóveis e na forma do art. 70 do Código Civil”. Vemos, assim, que o parágrafo único do artigo 5º estabelece o critério legal para a identificação do bem de família na hipótese de mais de um imóvel se destinar à residência da família: será reputado bem de família o imóvel de menor valor. O dispositivo em comento delineia, desde já, uma importante conclusão sobre a finalidade de se instituir o bem de família voluntário, que adiantamos: a instituição do bem voluntário só terá relevância no caso de a entidade familiar ser proprietária de mais de um imóvel para sua residência, e desejar tornar impenhorável aquele que tiver maior valor. Dessa forma, a eleição voluntária do bem de família mais valioso irá afastar a regra geral da incidência da impenho-rabilidade sobre o imóvel de menor valor. Por se aplicar somente nessa rara hipótese, e por exigir ato voluntário do proprietário, o bem de família voluntário, a ser visto em seqüência, tem pouca utilização. Bem de Família Voluntário O Código Civil de 2002 estabelece normas sobre o instituto, revogando alguns artigos da Lei de Registros Públicos, como se passa a expor: Art. 1.711. Podem os cônjuges, ou a entidade familiar, mediante escritura pública ou testamento, destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família, desde que não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição, mantidas as regras sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial estabelecida em lei especial. Parágrafo único. O terceiro poderá igualmente instituir bem de família por testamento ou doação, dependendo a eficácia do ato da aceitação expressa de ambos os cônjuges beneficiados ou da entidade familiar beneficiada. A destinação é de parte do patrimônio da entidade familiar à especial afetação da moradia e do sustento da família. Sendo assim, é preciso se ter em mente que o imóvel tem que ser de propriedade exclusiva da entidade familiar, não podendo estar, ao tempo da instituição do bem de família, sujeito a quaisquer ônus ou gravames que afetem o caráter pleno da propriedade. Nesse sentido é a lição de Ademar Fioranelli: “Requisito essencial e indispensável para fins registrários é a condição de proprietário com título aquisitivo e definitivo registrado, em estrita observância aos princípios da continuidade e disponibilidade, e que o bem esteja a salvo de ônus ou gravames, em •••
José Celso Ribeiro Vilela de Oliveira (*)