A DOUTRINA, A JURISPRUDÊNCIA E A CLÁUSULA DE INALIENABILIDADE
I. Introdução. Noções favoráveis e contrárias à inalienabilidade. Sílvio de Salvo Venosa nos introduz ao tema de modo claro e didático ao explicar que a inalienabi-lidade traz a indisponibilidade do bem e, conseqüentemente, não poderá ser alienado a qualquer título: não poderá ser vendido, doado, gravado, permutado ou dado em pagamento (1). Sílvio Rodrigues corrobora tal assertiva ao notar que o beneficiário recebe um domínio limitado, pois, embora tenha prerrogativa de usar, gozar e reivindicar a coisa, falta-lhe o direito de dela dispor (2). O jurista Washington de Barros Monteiro observa a situação da seguinte forma: Vários problemas de grande interesse prático suscita a cláusula de inalienabilidade, olhada com desconfiança por muitos autores, visto ser desfavorável à livre circulação dos bens, que representa, no dizer de Roquebert, a fonte da riqueza e da fortuna de um país. Além de cara à burguesia, acrescenta José Augusto César, a cláusula em questão fomenta a ociosidade dos filhos das famílias opulentas. Por outro lado, porém, muito escritores, como Saignat, a defendem, reconhecendo que a ativa circulação dos imóveis conduz quase fatalmente ao fracionamento da propriedade.Ademais, ninguém pode contestar a utilidade do vínculo, que ampara o beneficiário, pondo-o a salvo de perigosas prodigalidades (3). Sílvio Rodrigues, ilustre doutrinador, em sua obra, nos lembra que: A cláusula, desde sua origem romana, visa a proteger o beneficiado, impedindo que por sua imprevidência ou inexperiência venha a ser despojado de seus bens e, portanto, conduzido à miséria. Ora, proibindo-se a alienação, por mais adversa que lhe seja a sorte, ao beneficiário sobrarão sempre os bens inalienáveis. Manifesto, por conseguinte, o sentido assistencial da cláusula de inalienabilidade. Contra a sua permissão, entretanto, voltam-se muitas vozes. Argumenta-se: a) A cláusula de inalienabilidade introduz, dentro do campo das relações jurídicas, um elemento de insegurança, pois a existência de um bem impenhorável, no patrimônio do devedor, representa prejuízo para o credor, não raro burlado em sua boa fé. b) A cláusula, justificável talvez em período de exacerbação do individualismo, não deve ser admitida em detrimento do interesse da sociedade. Em rigor, ela visa proteger o inepto, que, através de sua imprevidência, do seu desatino e de sua imprudência, conduz-se a si mesmo à ruína. c) A cláusula aumenta a vaidade do autor da liberalidade, que se crê mais capaz do que o beneficiário. Qual a razão para se admitir que alguém anteveja o futuro longínquo, e de assim autorizá-lo a regular a condição de bens, nesse remoto porvir, em que ele, testador, não mais existirá? De todos os argumentos contra a cláusula de inalienabilidade, o mais contundente é o que a reprova por colocar um bem fora do comércio, por longo período de tempo. É de interesse da comunidade a circulação dos bens, e qualquer medida que a restrinja, no mero interesse individual, deve ser abolida. (4) Sílvio de Salvo Venosa, renomado jurista e professor, atenta a tais considerações: A imposição da cláusula proibitiva de alienação pelo testador pode vir imbuída de excelentes intenções: por receio de que o herdeiro viesse a dilapidar os bens, dificultando sua própria subsistência ou de sua família; tentativa de evitar que o sucessor ficasse, por exemplo, privado de um bem para moradia ou trabalho. Como geralmente a cláusula vem acompanhada da restrição da incomunicabilidade, procurava o testador evitar que um casamento desastroso diminuísse o patrimônio do herdeiro. São, sem dúvida, razões elevadas que, “ a priori”, só viriam em benefício do herdeiro ou donatário. Contudo, não bastassem os entraves que o titular de um bem com essa cláusula tem que enfrentar, como sua aposição podia ser imotivada pelo sistema de 1916, poderia o testador valer-se dela como forma de dificultar a utilização da herança, quiçá como meio de vingança ou retaliação, uma vez que não podia privar os herdeiros necessários da legítima. (...) Como bem aduz Orlando Gomes (“Sucessões”, Rio de Janeiro, Forense, 1981, p. 176), se a instituição da restrição, por si, não é uma aberração jurídica, porque pode ser útil sob determinadas circunstâncias, clausular de inalienabilidade a legítima contraria a própria essência dessa reserva legal aos herdeiros necessários. Se existe um patrimônio reservado a certos herdeiros, os bens nele contidos devem ser transmitidos sob as mesmas condições em que estavam em vida do disponente. O testador teria outros meios de preservar o patrimônio de seus herdeiros, sem ter que recorrer a medida tão violenta, polêmica e antipática (5). II. A inalienabilidade no Código Civil de 1916 e seus reflexos no Código Civil de 2002. A imposição da cláusula de inalienabilidade por disposição testamentária ou doação, na vigência do Código Civil de 1916, era regulada pelos artigos 1.676 e 1.723. O artigo 1.676 encontrava-se assim redigido: A cláusula de inalienabilidade temporária ou vitalícia, imposta aos bens pelos testadores ou doadores, não poderá, em caso algum, salvo os de expropriação por necessidade ou utilidade pública, e de execução por dívidas provenientes de impostos relativos aos respectivos imóveis, ser invalidada ou dispensada por atos judiciais de qualquer espécie, sob pena de nulidade. (g.n.) Antônio José de Souza Levenhagen ao comentar em 1989 esse dispositivo legal, alegava que qualquer contrato referente a alienação de bens gravados com a cláusula de inalienabilidade será nulo de pleno direito, pois o ônus não pode ser invalidado ou dispensado nem mesmo por atos judiciais. A vontade manifestada pelo testador ou pelo doador deve intransigentemente ser respeitada (6). Washington de Barros Monteiro ensina que a imposição da inalienabilidade em doação, pode ser levantada pelo doador desde que exista a anuência do donatário: Doação é contrato, em que a vontade das partes, livremente manifestada, pode modificá-lo e até rescindi-lo, salvo direito de terceiros. Morto o doador, entretanto, a cláusula torna-se irretratável e não mais pode ser dispensada, ainda que se trate de adiantamento da legítima (7). Nesse momento, veio à minha lembrança a história real, comentada por um professor de Direito sobre uma senhora, idosa e muito doente, que herdara na juventude vários imóveis, todos submetidos à cláusula de inalienabilidade. Durante toda a sua vida buscou dá-los em locação, pois era a única maneira de torná-los de certa forma rentáveis e não ter que arcar com seus custos tributários e condominiais. Todavia, como não logrou êxito em sua administração, arrebanhou uma infinidade de inadimplências, enquanto os imóveis iam deteriorando-se seja pelo transcurso implacável do tempo, seja pelo mau uso praticado pela maioria de seus inquilinos. Alcançando uma idade avançada, precisou fazer um tratamento médico urgente e submeter-se a uma cirurgia. Sem dispor da quantia monetária necessária, recorreu ao Judiciário a fim de buscar a autorização para venda de algum de seus vários imóveis. Sem saber o final da história, me pergunto se uma vez concedida a ordem judicial, teria conseguido ela, superar os entraves jurídicos e burocráticos em tempo hábil, encontrar um comprador e assim salvar sua vida? Washington de Barros Monteiro entende que ainda que o estado de saúde do “beneficiário” esteja a reclamar recursos financeiros mais substanciais para o tratamento respectivo, •••
Iuli Ratzka Formiga (*)