INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA E INSTRUMENTALIZAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO – ASPECTOS CONTROVERTIDOS
(Permuta de terreno por unidade a construir) É objeto de discussão, com reflexo na área notarial e de registros, qual seja o instrumento adequado para formalizar o negócio jurídico celebrado entre o proprietário do imóvel e o incorporador, nas situações em que o primeiro aliena ou promete alienar ao segundo a propriedade ou parte ideal dela, sem envolver preço em dinheiro, mas cuja contraprestação se dará em área construída. A pretensão é definir qual o contrato apropriado para a espécie, e que melhor reflita a realidade da relação pactuada pelas partes, sendo esta, dentre outras, a problemática que se busca equacionar. O tema, embora complexo em razão dos diferentes modos como o negócio é documentado na prática, não parece ser de difícil deslinde desde que sejam compreendidas certas premissas básicas de direito, em especial com a correta interpretação dos dispositivos legais, de modo a adequar o fato concreto à norma. 1. INTRODUÇÃO O mercado imobiliário mundial tem registrado, nos últimos anos, em especial pela busca do uso racional do espaço, cada vez mais exíguo nos grandes centros urbanos, uma nova modalidade de negócio jurídico, qual seja a alienação do imóvel pelo proprietário a terceiro, normalmente um incorporador, para receber deste, em contrapartida, área construída no próprio local, e não dinheiro. A esta espécie de negócio jurídico entendem alguns, quanto à legislação pátria, se tratar de contrato atípico, ou inominado, porque a figura contratual não apresentaria definição ou representação em lei, enquanto que outros lhe denominam como contrato típico, porém no mais das vezes fazendo-o de modo impróprio, com elaboração de contrato impróprio à refletir o verdadeiro negócio encetado pelas partes. Alguns elaboram o contrato como sendo de compra e venda com promessa de dação em pagamento, a concretizar-se com a entrega ao proprietário de unidade a ser construída no terreno. Outros o denominam como promessa de compra e venda, do mesmo modo para pagamento em unidade a ser construída, por dação em momento seguinte. Em certos casos é feito como promessa de permuta de bem atual por bem futuro. E ainda em outros o contrato é celebrado como sendo efetivamente de permuta. Para que se forme convencimento de qual das práticas comumente adotadas é a que melhor se amolda ao tipo, passa-se a analisar cada uma das formas contratuais utilizadas, buscando verificar-se qual delas pode ser tida como própria, constituindo-se em título hábil a ter ingresso no fólio imobiliário e a gerar, por conseqüência, jurídicos e legais efeitos, e porque razão os demais modelos utilizados não devem prosperar nesta espécie de relação, pela impropriedade técnica de suas nomenclaturas frente ao ordenamento jurídico, não espelhando a verdadeira realidade contratada. 2. FORMAIS CONTRATUAIS IMPRÓPRIAS 2.1. Compra e venda O contrato pelo qual o proprietário se obriga a transferir a propriedade de um determinado imóvel, em definitivo, a um terceiro, sem receber o preço em dinheiro, mas cuja contraprestação vai se dar mais adiante, pela entrega de uma ou mais unidades da edificação a ser construída no próprio terreno, tem sido muitas vezes tipificado como sendo negócio de compra e venda. Não parece ser este, entretanto, o contrato indicado a refletir a verdadeira natureza jurídica do negócio levado a efeito entre as partes, pena de ferir em seu âmago a melhor técnica legislativa, por não se tratar de compra e venda, mas de permuta, ou então promessa de permuta. Efetivamente, o art. 481 do NCC, mantendo ipisis litteris a redação do art. 1.122 do código de 1916, preconiza que “Pelo contrato de compra e venda, um dos contratantes se obriga a transferir o domínio de certa coisa, e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro”. Essa a exigência insuperável para caracterização do contrato de compra e venda: preço em dinheiro. Doutrina e jurisprudência são unânimes quanto a que haja preço em dinheiro, ou ao menos que seja em dinheiro a parcela principal. Washington de Barros Monteiro1 ensina que “o preço é, efetivamente, elemento vital, o traço mais característico da compra e venda. É a soma em dinheiro que o comprador paga, ou se obriga a pagar ao vendedor, em troca da coisa adquirida”. Orlando Gomes2, ao analisar o instituto, igualmente ministra que: o preço é a ‘quantia’ que o comprador se obriga a pagar ao vendedor. Elemento natural do contrato ‘sine pretio nulla venditio’, dizia Ulpiano. Deve consistir em ‘dinheiro’. Se é outra coisa, o contrato define-se como ‘permuta’ ou ‘troca’. Não se exige, contudo, que seja exclusivamente em dinheiro, bastando que constitua a parcela principal. Para se saber se é ‘venda’ ou ‘troca’, aplica-se o princípio ‘major pars ad se minorem trahit’; venda, se a parte em dinheiro é superior; troca, se é o valor do imóvel. E Mário Pazutti Mezzari3 é categórico em afirmar: “compra e venda não é, eis que falta o elemento preço certo em dinheiro”. Também não é diferente a concepção em legislações alienígenas, citando-se, a título de exemplo, igual entendimento no direito argentino, como se percebe na lição de Spota4, ao afirmar que “existe compraventa cuando una de las partes se obliga a transferir a la otra la propiedad de una cosa, y ésta se obliga a ricibir y a pagar por ella un precio cierto en dinero”. Tem-se então inequívoco que se a contraprestação estipulada não é em dinheiro, mas representada pela entrega de outro imóvel, ainda que bem futuro, não se caracteriza a compra e venda, mas sim troca, ou permuta. Diante disso, resta impróprio celebrar contrato de compra e venda, se representando por contraprestação que não seja dinheiro. Como conseqüência da impropriedade técnica, deverá o registrador de imóveis, cumprindo sua função técnico-administrativa, qualificar negativamente o contrato que lhe for apresentado com nomenclatura diversa da realidade ajustada. 2.2. Dação em pagamento Ao estabelecer-se, em tais contratos, que a contraprestação se dará mais adiante, através de dação em pagamento, desvirtua-se a disposição legal a exigir preço certo em dinheiro na compra e venda ou promessa, pois a dação em pagamento pressupõe sempre uma obrigação pretérita, a se adimplir por outro modo que não aquele originalmente contratado. De fato, o art. 356 do Código Civil brasileiro dispõe que “O credor pode consentir em receber prestação diversa da que lhe é devida”. O código revogado tinha redação similar: “O credor pode consentir em receber coisa que não seja dinheiro, em substituição da prestação que lhe era devida”. Três exigências básicas são necessárias para que ocorra a dação em pagamento. A primeira, que haja obrigação pretérita. A segunda, que a prestação seja adimplida de forma diversa da que era devida. E a terceira, que o credor aceite em receber outra coisa, diferente daquela que tinha originalmente direito de receber. Se a prestação é ajustada desde logo pela entrega de unidade futura, não se tratará nem de prestação diversa, e nem mesmo prestação pretérita, pois assim, sendo pactuada como certa, não vai caracterizar dação, ou, em outras palavras, a dação em pagamento não se constitui como nascedouro de obrigação, por ser instituto próprio para solver obligatio anterior. Exige-se, pois, dívida pretérita para que possa •••
José Hildor Leal (*)