BEM RESERVADO
Por intermédio do nosso estudioso escrevente de notas paulistano, Sr. WILSON BUENO ALVES, chegou ao nosso conhecimento de que numa comarca do interior de São Paulo, um notário lavrou uma escritura de venda de um imóvel urbano, adquirido por uma mulher casada, com anuência de seu marido, dando à aquisição do imóvel, os característicos expressos de BEM RESERVADO. Tal escritura não foi acolhida para ingresso na serventia predial pelo respectivo oficial, sob a alegação de que em face do § 5º do artigo 226 da Constituição Federal, o art. 246 do Código Civil fora revogado, conseqüentemente abolido está do nosso direito positivo o chamado BEM RESERVADO. O assunto foi por nós apreciado no BOLETIM CARTORÁRIO nº 30 pág. 2, correspondente do BDI. nº 30 pág. 26, 3º decêndio?outubro de 1996. No final daquela apreciação colocamos as páginas do BOLETIM CARTORÁRIO ao oficial registrador que não acolheu a escritura para registro, para vir ele expor e justificar o seu entendimento. Nem o notário que lavrou a escritura e nem o oficial que a não acolheu se manifestaram até hoje, dia 23.11.96, sobre aquele nosso entendimento. Contudo, no Rio Grande do Sul, fomos ouvidos por um de seus mais ilustres e capacitados registradores, merecemos a expressa contestação ao nosso entendimento, demonstrando mais uma vez que os gaúchos estão na frente com relação ao estudo de assuntos notariais e registrais. Não são apáticos e indiferentes. Manifestam o seu entendimento, como soe acontecer com os que estudam e sabem. Expõem seu entendimento, não somente porque sabem, mas porque estudam e assim valorizam os serviços que realizam. Quem apreciou de forma expressa, clara e objetiva o assunto foi o culto e dedicado oficial registrador de PELOTAS/RS, Dr. MÁRIO PAZUTTI MEZZARI e o fez de forma altamente elegante, o que inegavelmente é a marca da sua personalidade. Todo o material que recebemos do Dr. MARIO PAZUTTI MEZZARI é altamente útil para todos os cartorários do Brasil, inclusive no formalismo do processamento da dúvida, pelo que vamos transcrever os seguintes documentos que dele recebemos: 1 - Sua carta. 2 - Petição suscitando a dúvida. 3 - Petição e documento obtido posteriormente a fortalecer o seu entendimento, a revelar seu zêlo e dedicação aos serviços, documento esse que é um julgado do TJRJ. 4 - Impugnação da dúvida feita pelo não menos dedicado e capacitado advogado gaúcho, Dr. JOSÉ GILBERTO DA CUNHA GASTAL, 5 - Parecer do Ministério Público e 6 - Sentença do MM. Juiz de Direito de Pelotas. Fazemos essa transcrição porque a solução do assunto, embora controvertido, inclina?se mais em apoio ao entendimento do Dr. MÁRIO PAZUTTI MEZZARI, com o qual antecipadamente já registramos nossa divergência e após a transcrição de todo o material recebido e já mencionado iremos confirmar e reiterar o nosso entendimento com as devidas cautelas e esclarecimentos a todos os nossos leitores. Assim, este número do BOLETIM CARTORÁRIO é para nós altamente expressivo, pois só divulgará ele um ÚNICO ASSUNTO com estas particularidades: 1º - é útil para todos os leitores, no que tange ao processamento da dúvida imobiliária; e 2º - o assunto de natureza eminentemente técnica de registrária, outro ângulo que também deve em nosso entender ser apreciado para a devida solução sem comprometimento do direito. Esperamos que este assunto - BEM RESERVADO - pela sua importância e pela polêmica que vem ensejando seja um marco na vida do BOLETIM CARTORÁRIO, e que outros assuntos que de futuro venham a ser propostos mereçam de todos o mesmo interesse demonstrado pelo Dr. MÁRIO PAZUTTI MEZZARI, pois só com o estudo, notários e registradores farão jús a esta expressiva qualificação que a lei os identifica, "PROFISSIONAIS DO DIREITO, DOTADOS DE FÉ PÚBLICA". (Art. 3º da Lei Federal nº 8.935/94). Iniciemos a transcrição dos documentos já mencionados, e em seguida retornaremos ao tema, expondo sob outro ângulo o nosso entendimento. "Pelotas, 04 de novembro de 1996. Prezado Dr. Albergaria: É com renovada alegria que me dirijo ao mestre de todos nós, notários e registradores. Desta vez para abordar o assunto BEM RESERVADO, objeto de brilhante (como usual) trabalho publicado por V.Sa. no Boletim Cartorário nº 30 de Outubro/96. No dito popular, "serviu-me o chapéu", pois salvo engano de minha parte, o caso ali abordado tramitou por meu Serviço Registral. Apenas para relembrar, foi lavrada uma escritura pública onde a mulher, casada pelo regime da comunhão de bens, com a anuência do marido, veio a adquirir um bem imóvel somente para si, valendo-se do disposto no art. 246 do Código Civil (com a redação que lhe foi dada pelo assim chamado Estatuto da Mulher Casada - Lei nº 4.212 de 27.08.1962). Impugnei a escritura por entender que não mais existe em nosso Direito Positivo a figura do Bem Reservado, revogado pelas disposições constitucionais, especialmente a do art. 226, § 5º, que diz serem iguais os direitos e deveres do homem e da mulher. A questão não está jungida apenas à liberdade contratual, onde estão presentes e concorrentes as vontades de marido e mulher. A questão envolve a regra basilar do regime de bens entre os cônjuges: uma vez pactuado, não pode ser alterado. Vale dizer, se os cônjuges casaram por determinado regime de bens, é aquele regime que vigorará entre ambos para sempre, não lhes sendo lícito dispor em contrário. A exceção a esta regra estava no chamado Bem Reservado. E que, data venia, não mais existe. Suscitei dúvida a pedido da parte, representada que era por um dos mais ilustres advogados de minha terra, a que brilhantemente defendeu a registrabilidade da escritura. Mas eis que a fortuna quiz que, escudada em recentes decisões dos tribunais, o Ministério Público concordasse com minhas razões e a sentença do ilustre Juiz Diretor do Fôro de Pelotas seguisse a mesma senda: o Bem Reservado não mais existe em nosso sistema legal. Subsiste apenas como um fato histórico e que gerará efeitos para as situações Jurídicas já assentadas (imóveis já reservados), mas que não poderá mais ser usada para casos posteriores à Constituição de 1988. Para não repisar os mesmos argumentos que levantei à época da suscitação, anexo os termos da dúvida, a promoção do Ministério Público e a sentença, nos quais se encontra inclusive jurisprudência favorável ao nosso posicionamento. Dr. Albergaria: bem sei que discordamos, fraternalmente, eis que esposamos entendimentos divergentes. E o amigo, com maestria, aponta outras situações (a da idade núbil diferente para homem e mulher, por exemplo) como prova de que nosso corpo de leis ainda preserva diferenças entre o homem e a mulher, e a partir desta incontestável afirmação, construiu sua bem elaborada tese de que o Bem Reservado persiste e pode ser usado para aquisições posteriores à Constituição de 1988. Pois, aqui de minha parte, gostaria de poder responder com argumentos à altura da cultura jurídica do mestre. Gostaria prezado amigo, de não ter tantas limitações e tantas dúvidas no trato das coisas do direito. Por isso leio atentamente o que escrevem os doutos, e entre eles certamente que estás, em lugar de destaque. De fato, não sou capaz de responder à altura sobre os critérios que levaram o legislador a distinguir entre homens e mulheres quanto à idade núbil, mas me parece evidente que estas diferenças nasceram da realidade física, da própria natureza dos seres, e não de construção jurídico-filosófica ou de imposição social. São diferenças de constituição natural, não de direitos em si. As mulheres não são o tão propalado sexo fraco. Ao contrário, apesar das históricas situações de inferioridade que a elas impôs a lei e os costumes (diferenças estas que felizmente hoje já não mais existem), o fato é que elas amadurecem mais cedo, mais cedo tornam-se adultas. E essa superioridade soube reconhecer o legislador civil e admite que casem mais cedo. A grande sabedoria está em tratar desigualmente os naturalmente desiguais. Se por sua própria natureza a mulher torna-se adulta, física e mentalmente, ANTES do que o homem, é justo e me parece bem que o legislador mantenha a diferença na idade núbil. Esta diferença decorre da simples constatação de verdades naturais (e não na concessão de direitos decorrentes de fatores sócio-econômicos, como era o caso do Bem Reservado). Algumas diferenças de tratamento entre homens e mulheres ainda persistirão, para todo o sempre, nas nossas leis. São diferenças ditadas pela natureza e inarredáveis. A licença-maternidade e a licença-amamentação somente podem ser concedidas à mulher, a não ser que nos tornemos hermafroditas. Também me parece que os bens adquiridos "muito tempo depois" (cfe. jurisprudência citada) da separação de fato e ANTES da homologação da sentença, não devem entrar na partilha não por serem Bens Reservados, mas por não ter havido o concurso do esforço comum tão necessário à comunhão dos bens. São situações extremamente distintas: no BEM RESERVADO do art. 246, os efeitos se operam "ex tunc", ou seja, desde a escritura pública. A sua publicação no registro imobiliário é constitutiva e suficiente para gerar todos os efeitos. Já nos BENS APARTADOS (permita-me o neologismo) da comunhão, adquiridos durante a constância do casamento mas em período posterior à separação de fato, os efeitos da não comunhão somente decorrem de decisão judicial. Seus efeitos se operam "ex nunc", eis que é direito que submete-se à obrigatória homologação judicial. E, é preciso que se diga, o Bem Reservado do art. 246 protegia apenas a mulher; os Bens Apartados podem beneficiar homens e mulheres. O Bem Reservado do art. 246 nasceu não de uma necessidade natural, mas de imposição sócio-econômica, num tempo em que a mulher recém emergia das brumas de um sistema legislativo que lhe tolhia e diminuía. Aliás, tratando do Bem Reservado, parece termos uma síntese do tratamento da mulher no nosso Direito Positivo: ANTES do Estatuto da Mulher Casada a mulher era tratada como cidadã de segunda classe, submetida ao marido em inúmeras situações; APÓS 1961, a mulher ganhou direitos iguais e até mesmo superiores ao do homem, com no caso do Bem Reservado; e ATUALMENTE, com a Constituição Federal de 1988 e as equiparações previdênciárias, atingimos o que parece ser o ideal da igualdade. Mas estas são questões filosóficas, trabalho para os doutos, não para este registrador de Província. A questão certamente que merece continuar sendo debatida. E é para abordar novas razões ao debate - não para polemizar - que encaminho ao amigo as cópias anexas. Receba meu mais fraternal abraço e a renovada admiração pelo brilhante trabalho à testa do Boletim Cartorário. Cordialmente Mário Pazutti Mezzari Registrador do 1º Ofício de Registro de Imóveis PELOTAS - RS" Exma. Sra. Dra. MARIA DO CARMO MORAES AMARAL BRAGA MM. Juíza de Direito Diretora do Fôro COMARCA DE PELOTAS - RS MÁRIO PAZUTTI MEZZARI, Oficial do Registro de Imóveis da 1ª Zona de Pelotas, venho à presença de V.Exa. suscitar DÚVIDA nos termos do art. 198 da Lei 6.015/73, e para tanto aduzo: 1 - Recebi para registro a anexa escritura pública de compra e venda, lavrada pelo 2º Tabelionato de Pelotas e que tem como outorgados GERSON SILVEIRA DE VARGAS e sua mulher MAGALI FERNANDES VARGAS. 2 - Protocolei o documento e, após o exame de praxe, constatei que a escritura busca uma situação dominial com amparo em legislação revogada pelos dispositivos da CF 88. 3 - Por este motivo, impugnei o documento. A parte está irresignada e solicitou-me a suscitação da dúvida, o que ora procedo. OS MOTIVOS DA IMPUGNAÇÃO Consta na escritura que os compradores são dois, marido e mulher - GERSON e MAGALI. E ali se declara que parte de "... 35% do imóvel é adquirido com recursos de sua comunhão" e parte de "... 65% com recursos privativos da compradora Magali Fernandes Vargas, a teor do artigo 246 do Código Civil Brasileiro". Fui buscar no código o alcance desta declaração constante na escritura, para determinar quais os seus efeitos patrimoniais. E constatei que o art. 246 do CCB contempla o chamado BEM RESERVADO DA MULHER. Este dispositivo foi inserido no código pelo chamado Estatuto da Mulher Casada (Lei nº 4.121/62), e previa a possibilidade da mulher adquirir bens imóveis somente para si, livre da comunhão dos bens do matrimônio, desde que os adquirisse com o produto de seu trabalho. Este dispositivo, como de resto qualquer outro dispositivo legal que atribua direitos diferentes para o homem ou para a mulher, foi plenamente revogado pela Constituição Federal de 1.988, que prevê a total IGUALDADE DE DIREITOS E DEVERES do homem e da mulher. A nova Carta Constitucional rejeita discriminação sexual e, obviamente, não recepciona legislação que contrarie este regra. A base legal está no art. 5º, inc. I, que reza que "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição". Lembro-me que, num primeiro momento, logo após a edição da atual constituição, a análise do novo texto constitucional, confrontado com o disposto no art. 246 do CCB, trouxe alguma discussão. Diziam alguns que, sendo homens e mulheres iguais em direitos, também o homem poderia se valer do disposto no art. 246. Diziam que surgia ali o BEM RESERVADO DO HOMEM. Pois se a mulher tem os mesmos direitos que o homem, o raciocínio inverso também é verdadeiro - o homem tem os mesmo direitos que a mulher. E, diziam, também pode reservar •••
Antônio Albergaria Pereira - Advogado